‘O ódio nas mídias sociais aumentou; agora é ódio e ressentimento de militantes bolsonaristas versus ódio e espírito de vingança de militantes lulopetistas’
Antes de qualquer coisa é preciso colocar as coisas no lugar. Lula não foi eleito com seus próprios votos. Só venceu (e por menos de 2%) graças aos votos dos não-petistas que queriam remover Bolsonaro. Lula foi eleito sem um programa de governo. Achou que bastaria evocar a memória afetiva de seus dois mandatos anteriores. Não bastou. Foi necessário contar com o apoio eleitoral dos democratas liberais, quer dizer, não-populistas (ditos de centro).
Lula sabe que é impossível reproduzir, vinte anos depois, o período 2003-2010. Nos anos 2023-2026 não se reunirão as condições econômicas, sociais e políticas para tanto. Mesmo assim, o lulopetismo e o jornalismo alinhado continuam insistindo nessa farsa.
A frente eleitoral que se formou para impedir a reeleição de Bolsonaro, não é uma frente ampla para governar. Não tem coordenação plural conjunta, nem programa mínimo comum. Ou seja, não há frente ampla a não ser na propaganda difundida pelo jornalismo chapa-branca. A propaganda oficial diz que Lula fará um governo de transição. Está correto. Será um governo de transição para outro governo do PT e não para o governo de um candidato escolhido consensualmente pela (inexistente) frente ampla.
Os dois primeiros mandatos de Lula se exerceram praticamente sem oposição (a não ser um arremedo de “oposição” tucana que, a despeito de ser democrática, foi vacilante, leniente e conivente). O terceiro mandato de Lula será confrontado por uma oposição antidemocrática bolsonarista. Lula e o PT não gostam de oposição democrática. Preferem engolir todas as forças democráticas da sociedade para praticar uma política bipolar, degenerando o modo de regulação de conflitos numa espécie de guerra civil fria entre progressistas e fascistas.
Para continuar travando essa guerra, dizem que toda oposição – mesmo a legítima oposição democrática – é antipetismo: uma posição caracterizada como doentia, supostamente alimentada pelo ressentimento. Os efeitos da incompreensão dessas realidades – sobretudo o não entendimento do papel da oposição democrática numa democracia – aprofundarão a divisão da sociedade brasileira em vez de tentar superá-la e pacificá-la.
Sim, para além da polarização, o que há é uma divisão na sociedade brasileira. Acrescente-se que essa divisão nunca vai se resolver com base na disputa bipolar governistas (progressistas) x fascistas (bolsonaristas). Por isso precisamos de pluralidade no campo da democracia. Mas a política pervertida como continuação da guerra por outros meios – ao aplastar a pluralidade democrática – será devastadora para a democracia.
É bom observar com atenção. Depois da vitória de Lula, o ódio nas mídias sociais não diminuiu. Pelo contrário, aumentou. Agora é ódio e ressentimento de militantes bolsonaristas versus ódio e espírito de vingança de militantes lulopetistas. Não há luz alguma no fim desse túnel.
A pacificação mínima de que precisamos só acontecerá se abrirmos mão de querer dar o troco aos bolsonaristas. É preciso, pelo menos em parte, esquecer muito do que passou para voltar a empolgar o país em torno de pautas positivas e de projetos para o futuro. A atuação de um CCF (Comando de Caça aos Fascistas, espelho do velho CCC – Comando de Caça aos Comunistas), que queira promover o cerco e aniquilamento dos bolsonaristas, só vai fazer a guerra recrudescer.
Ademais, não basta ser antifascista para ser democrata. Nicolás Maduro e Daniel Ortega, dois ditadores sanguinários, também são antifascistas. O ditador Putin fez uma guerra de conquista contra a Ucrânia para acabar com um suposto nazifascismo ucraniano. O ditador Xi Jinping – outro antifas – controla e reprime brutalmente sua população. Aliás, o muro de Berlim do lado soviético era chamado de Antifaschistischer Schutzwall (muro de proteção – ou barreira – antifascista).
Na base da vingança – olho por olho, dente por dente – nunca haverá pacificação. Além da justiça será necessária uma boa dose de misericórdia ou compaixão. Para tanto será preciso relevar algumas ofensas para tentar entender os desejos e as dores dos que entraram na onda bolsonarista de rejeitar e atacar a democracia. Não são todos fascistas. Ou é isso ou teremos pela frente uma guerra civil fria de longa duração.
Não é possível exterminar quase 60 milhões de pessoas que escolheram Bolsonaro. Não é possível exigir que essas pessoas abjurem em praça pública em troca de não ir para fogueira. Não é possível separar os líderes do rebanho, punir os chefes esperando contar com a desistência dos liderados pelo temor de serem também justiçados. Porque, ao contrário do que muitos pensam, não há mais somente comandantes e comandados.
O bolsonarismo é hoje um movimento descentralizado (ainda que não distribuído) e altamente capilarizado. Está profundamente enraizado em algumas categorias profissionais (como policiais, militares, caminhoneiros e até médicos) e em milhares de localidades pequenas e médias do interior do país. Não foi por acaso que Bolsonaro venceu em todas as regiões do Brasil, com exceção de uma (Nordeste).
Que fique claro, porém. Bolsonaro e vários integrantes de seu governo devem prestar contas à justiça pelos muitos crimes que cometeram, sobretudo contra a saúde pública – observando-se, sempre e rigorosamente, o devido processo legal. Mas condenar e prender Bolsonaro, sua mulher, seus filhos, seus influencers e seus generais golpistas, não vai acabar com o bolsonarismo. Dependendo de como isso for feito, da sumariedade dos processos e dos atropelos aos códigos penais, pode ter efeito contrário. Estamos falando de política, não de antipolítica. Uma nova cruzada de limpeza – uma espécie de lavajatismo com o sinal trocado – será antipolítica.
A necessária pacificação é política – não jurídica. Não significa que a justiça deva deixar de processar quem viola as leis. Mas significa que, em nome da justiça, não se conforme um movimento político baseado em vontade de vingança e desejo de revanche.