É imortal a frase pronunciada pelo príncipe Falconieri, um dos personagens de Tomaso de Lampedusa (1896-1957) no romance O leopardo, ao descrever sucintamente a decadência da aristocracia siciliana durante o chamado Risorgimento: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
Nada mais evidente que a sábia visão de Falconieri, sobretudo quando observada à luz da cena brasileira ao longo das últimas décadas, com a sucessão de expectativas jamais satisfeitas na concepção miasmática do estado de bem estar social, uma das fábulas preferidas da politicalha tupiniquim.
Há dois momentos emblemáticos na história recente do país a comprovar o indiscutível acerto de Lampedusa: o advento da Nova República sob a presidência de José Sarney (nunca se andou tanto para trás) e a chegada do lulopetismo ao governo da República, em 2002.
Desde então, foram raros os lampejos da criatividade governamental e, em maior escala do governo da União, no que diz respeito à implantação de medidas efetivamente destinadas a recuperar os padrões da tão desmoralizada qualidade de vida dos cidadãos.
As únicas realizações dignas de menção foram a Constituição de 1988 e o Plano Real (governo Itamar Franco), que abriu caminho para a valorização da nova moeda, embora hoje em azarada recorrência vivida pelo povo brasileiro, apareça entre as mais desvalorizadas da economia mundial, haja vista a torrente de decisões econômico-financeiras altamente corrosivas, ditadas de forma quase absolutista nos últimos anos pelo governo federal.
É impressionante a rapidez com que os bons propósitos, especialmente os que são formulados pelo discurso político, se esvaem como a bruma das manhãs. Inclusive os avanços em termos de garantia dos direitos individuais consagrados pela Constituição cidadã, hoje tratados como lana caprina. Para se reeleger em 2014 a presidente Dilma Rousseff “inventou” um novo país das Arábias, um Eldorado redivivo, onde as ruas seriam calçadas de ouro, prata e pedras preciosas. O povão comeria brioches e ambrosia, passando a viver numa felicidade jamais experimentada nesse imenso país abaixo do Equador. Foi o que se viu.
Hospitais, clínicas e postos de saúde sem estoques de vacinas, remédios de uso primário e, tampouco, equipamentos para atendimento pouco mais exigente do ponto de vista médico de milhares de pacientes. Crianças estão nascendo com microcefalia por causa da ação deletéria de um inseto conhecido desde a Idade Média e jamais eliminado. A fome, um estigma de povos marginalizados do processo civilizatório ronda outros milhares de brasileiros.
O preceito de Lampedusa é visto e praticado no Brasil contemporâneo em toda a sua extensão, sem que a classe política se dê conta do enorme prejuízo material e moral causado por essa impiedosa fraude imposta à coletividade. Essa se vira como pode.
Na apresentação do livro O esquecimento da política (Agir, RJ, 2007), organizado pelo jornalista e professor de filosofia Adauto Novaes, a partir do ciclo de conferências sobre o tema realizado em 2006 em várias capitais, diz-se que “assistimos hoje a uma forma mais devastadora de avaliação da esfera pública”. A referência segue o exposto no parágrafo anterior: “Os acontecimentos recentes da campanha eleitoral à presidência da República servem de exemplo: sem debate público sobre projetos e programas de governo, assistimos mais uma vez à produção fantasiosa da política. O marketing procurou não apenas vender a imagem do político como pessoa privada, dotada de atributos pessoais, mas também transformar o cidadão na figura de ‘empresário’. ‘Somos 180 milhões de patrões’, dizia a propaganda oficial do Tribunal Superior Eleitoral, ‘e vamos escolher o nosso trabalhador’”.
O organizador do livro enfatiza nesse contexto a importância da palavra, cuja natureza é “querer significar mais do que ela é, e é nesse sentido que se pode dar a ela uma dimensão verdadeiramente política”. Alinhando-se ao pensamento ético de Paul Valéry, acrescenta que “dizer é antes de tudo fazer sem saber, muitas vezes, o que se fez. Isso se dá porque, queiramos ou não, a palavra nos impõe o pensamento dos outros”.
A fórmula do filósofo francês transparece em que “o que há de excitante nas ideias não são ideias; é o que não foi pensado ainda; é o que é nascente e não o nascido que excita. São necessárias, portanto, palavras com as quais jamais se chegue ao fim – e que jamais sejam anuladas por uma representação qualquer”.
Para que se tenha consciência da palavra é preciso, portanto, saber dizer: “A palavra do sujeito falante é contingente, utópica, jamais imparcial ou neutra como quer a política. A palavra não subordinada à tagarelice dos políticos é um corpo de pensamentos errantes e em permanente construção, ainda que expressa de maneira mais ou menos imprecisa e mais ou menos diferente” escreveu Adauto, ao resumir o que Valéry entendia por trabalho livre do pensamento: “A intenção de significar não está fora das palavras ou ao lado delas. Ao falar, realizo constantemente a fusão interior da intenção com as palavras. A intenção, por assim dizer, anima as palavras, e o resultado dessa animação é que as palavras e toda fala encarnam, por assim dizer, uma intenção e, uma vez encarnada, trazem nelas seu sentido”.
O intróito do livro com a transcrição das conferências pronunciadas no ciclo O esquecimento da política, com destaque, entre outros, para Francisco de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, Luiz Felipe Alencastro, Miguel Abensour e Lilia Moritz Schwarcz, com apresentações em Curitiba no SESC da Esquina, aponta para o risco mais pernicioso da algaravia política: “Se os políticos utilizam-se das palavras para dominar, é preciso também um trabalho político da palavra para resgatá-la das armadilhas, tirá-la do estado flutuante e fixá-la em estados de realidade. Isto é, tirar da palavra a ideia de valor e dar a ela sentido”.
Enfim, para os cidadãos de Botocúndia, onde tudo permanece igual apesar de tantas quantas foram as mudanças operadas, não é surpresa constatar que a palavra da maioria dos políticos – sobretudo os que se imaginam por cima do angu – não vale mais que um vintém de mel coado.
No domingo passado leu-se na coluna de Vinicius Torres Freire, na Folha de S. Paulo, que “é muito difícil entender o que diz Dilma Rousseff”. O assunto tratado era a entrevista presidencial dada na sexta-feira (15) sobre a situação da Petrobras, levando o colunista a opinar que possivelmente “o assunto principal se tenha perdido no discurso outra vez assintático, convoluto e aleatório de Dilma. O palavrório torna-se ainda mais tumultuário quando a presidente parece afligida pelo desejo de demonstrar que está à altura de si mesma, de se provar a gerentona eficiente e sabida, mistura viva de almanaque capivarol com googlepédia de qualquer assunto de governo, do comezinho ao abstruso”.
Vinicius, noves fora as platitudes de Dilma sobre os ventos ameaçadores que sopram sobre a maior empresa nacional (no início da semana suas ações estavam abaixo de cinco reais), escreveu que “a vaidade do poder rende mais palavrório em um ambiente como o nosso, de instituições carnavalizadas e de aversão a formalidades necessárias. Falavam demais FHC e sua vaidade intelectual, Lula e sua vaidade de encantador de plateias, Dilma e a vaidade de sua tecnocratice ingênua”.
Não é coincidência, mas a revista Veja da semana publicou artigo de J. R. Guzzo (Aparências e fatos), no qual faz comentários sobre cenas da vida brasileira — tal como ela é nos dias de hoje — sem falta dos dizeres recentes da presidente, com a oportuna advertência: “Mas tanto faz onde foi, ou quando, ou por quê. É a mesma coisa desde que entrou para o governo, especialmente depois que assumiu a presidência – suas falas de improviso, nas quais vai empilhando frases sem pé nem cabeça e empulhando os ouvintes com informações incompreensíveis, num português que seria reprovado em qualquer prova de primeiro grau, tornaram-se a grande grife de sua passagem pelo comando da nação”.
Guzzo admite ser crível que “Dilma saiba expressar-se corretamente em português, mas não queira. É possível que queira, mas não saiba. É possível que queira e saiba, mas não consiga. O fato real é que não se expressa – e que o patoá utilizado por ela, tão volumoso que já rendeu até livro com a coleção das tiradas mais alucinantes, virou parte inseparável da cena brasileira de hoje”.
E levanta uma previsão que para melhor aproveitamento deverá ser analisada sem paixões ideológicas, qual seja “a razoável chance de acerto que os observadores do futuro, ao olharem para o Brasil dos nossos dias, façam a pergunta que se segue: por que os brasileiros de 2016 achavam normal aceitar na Presidência de seu país alguém que apresentava uma patente disfunção nos circuitos que ligam o cérebro às cordas vocais? É aí que o pensamento se transforma em palavra; se alguma coisa errada está acontecendo nessa engrenagem, parece claro que temos um problema, sobretudo quando a engrenagem em questão está na cabeça da presidente da República”.
Por fim, há motivos para ressaltar ainda essa outra declaração do filósofo Paul Valéry (1871-1945), a bem da verdade, inesgotável mina intelectual recorrida pela maioria dos conferencistas do ciclo O esquecimento da política, não apenas pela descoberta de atualizados juízos de valor, mas acima de tudo pela luminosidade com que o pensador vislumbrou, com décadas de antecedência o que aconteceria na antiga Terra de Vera Cruz nos primórdios do século 21: “A autoridade é o poder a ser obedecido apenas diante da ordem, da palavra, ser obedecido física ou intimamente, isto é, levado em conta. Não é necessário ter força nem apresentar provas – a condição é essa; e se a força estiver em jogo a autoridade cessa, assim como o peso não mais existe quando o corpo cai”.
Literalmente o governo Dilma Rousseff é um corpo em queda livre.