Agora que Fidel Castro está reduzido a alguns gramas de pó e repousa num mausoléu em Santiago, onde nasceu, ao lado de José Martí, seu grande ídolo revolucionário, passados mais de 30 anos é um exercício intelectual tonificante retornar às fontes confiáveis sobre o que verdadeiramente ocorreu em Cuba, cuja credibilidade as levou a serem condenadas à aniquilação física e mental, prisão e exílio, ou pior ainda, ao suicídio.
Uma dessas fontes reconhecidas no chamado mundo livre é o escritor Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), homem inteiramente impregnado pelos ideais da revolução cubana, posto que dissidente já nos primeiros anos, a ponto de em 1962 (Fidel entrou em Havana em 1958), falar abertamente contra a orientação ideológica admitida por Castro.
Primeiramente engajado no serviço diplomático cubano, Guillermo serviu na embaixada de Bruxelas, mas em 1965 exilou-se na Espanha e, pouco depois em Londres onde adquiriu cidadania britânica e veio a falecer.
No livro Mea Cuba (Companhia das Letras, SP, 1996), que poderíamos classificar de memórias políticas de um intelectual cubano desapontado com os rumos daquilo que Fidel e seus seguidores chamavam de revolução da liberdade, encontramos uma longa coleção de textos esparsos, crônicas, entrevistas, artigos e ensaios publicados anteriormente e organizados em 1992. A brilhante tradução para o português foi feita pela paranaense Josely Vianna Baptista, aliás, tradutora de uma pletora de insignes autores latino-americanos.
Num ensaio escrito em 1983, por volta de 15 anos depois da vitória dos barbudos de Sierra Maestra, Cabrera Infante escreveu, a propósito da morte por suicídio de Haydée Santamaria, heroína da revolução, que o gesto final havia sido “uma declaração de princípios e de fins” e, ainda, que “o suicídio era sua única ideologia, apesar do fidelismo que a tornou política, e do marxismo, ao qual se converteu mais tarde. Haydée Santamaria não tinha nascido para a morte, como todos, mas para o suicídio, como the unhappy few. Esta fé revelada agora era a fé de uns poucos e a única ideologia cubana possível à revolução, à república antes, a Cuba desde o século passado”.
A revolução cubana chegou ao poder com o afastamento do ditador Fulgêncio Batista, que dera um golpe de Estado em março de 1952. Foi nesse contexto, segundo Cabrera, que Fidel Castro, “então líder estudantil sem nome, político de pouco futuro eleitoral e sempre um gangster”, começou a aglutinar em torno de si a força rebelde que, finalmente, derrubou o ditador de plantão.
Mas, o tema proposto por Guillermo Cabrera Infante, autor de Três tristes tigres, seu primeiro romance, é o suicídio como subproduto abominável da revolução cubana. Lembrou que quando Fidel tomou o poder, membro proeminente do MR 26 de Julho e irmão de um ministro importante do novo governo, foi acusado de prevaricação. “Ao ver seu nome nos jornais, sem sequer esperar a vista da causa ou o depoimento das testemunhas de defesa, este jovem funcionário disparou um tiro na têmpora, método favorito do bushido cubano para expiar a culpa ou a tênue mancha moral, por meio de um haraquiri rápido”.
A essa altura, o escritor cita o estranho desaparecimento do comandante Camilo Cienfuegos, chefe do exército rebelde e braço direito de Fidel Castro, uma forma clara de autoextermínio. “Em busca de seu avião perdido, um pequeno Cessna, a parada obrigatória era o aeroporto militar de Camaguey, de onde o avião saíra originalmente. Fidel Castro em pessoa fez investigações, rápidas e ríspidas. Interrogou o controlador de voo, que contou ter dado sinal verdade ao avião sob protestos”, tendo em vista que o radar mostrava uma grande tempestade que rapidamente avançava para a costa.
O controlador advertiu Cienfuegos, que não obstante ordenou ao piloto que seguisse adiante, aliás, uma palavra de ordem revolucionária muito repetida naqueles dias, asseverando que voar naquelas condições era suicídio. Isso ensejou ao escritor, tempos depois, uma conclusão corajosamente veraz: “E o suicídio foi a causa do desaparecimento de Camilo Cienfuegos. Mais surpreendente do que esta revelação foi a descoberta de que, durante todo o tempo que durou a busca do aparelho e de seu eminente passageiro, Fidel Castro mostrou um desinteresse que era quase indiferença diante da morte de seu amigo e companheiro de armas”.
Em outubro de 1959, data em que o comandante Huber Matos renunciou a chefia militar da província de Camaguey, “foi preso pelo próprio Fidel Castro, que foi a pé do aeroporto até o quartel do exército, seguido por uma multidão exacerbada por seu discurso, no qual, minutos antes, acusara Matos de traidor e contrarrevolucionário”.
O comandante aguardava tranquilamente em sua chefatura, quando um dos oficiais de seu estado-maior, o capitão Manuel Fernandez, saiu à varanda com a arma na mão para receber Fidel e a multidão: “No entanto, ele dirigiu a arma para sua cabeça em vez de apontá-la para a oposição e disparou um tiro, matando-se no ato”, escreveu Cabrera.
Um dos suicídios mais estranhos e inexplicáveis ocorridos em Cuba depois da revolução, prosseguiu, “e nada conhecido fora do país, foi o de Raúl Chirino, revolucionário transformado em contrarrevolucionário pela revolução, que se suicidou em 1959 dentro de um pronto-socorro de Havana, quando era interrogado pessoalmente por Fidel Castro”.
Nesse longo ensaio, Cabrera Infante dedicou também alguns parágrafos a Che Guevara, assim como o faria em muitas outras porções do livro, já que a figura do argentino é predominante em se tratando da revolução cubana. O escritor afirmou que “a carreira política (e principalmente militar) de Che Guevara foi um verdadeiro deslocamento de xadrez de casas atravessadas, mau Cavalo, depois de deixar Cuba e embarcar nas duvidosas aventuras de político caçador branco no Congo e seu desastre sul-americano”.
Infante, objetivo em essência embora literalmente cáustico, lembrou que antes de morrer Ernesto faria suas infames declarações de princípios em que chegou a dizer: “Como estaríamos próximos de um futuro luminoso se no mundo surgissem dois, três ou muitos Vietnãs com sua bagagem de morte s e suas intensas tragédias!”. Estas poderiam parecer as palavras de “um anarquista in extremis, e não do socialista ou mesmo marxista ortodoxo que Guevara professava ser, o homem que tinha doutrinado Fidel Castro, selvagem político, lendo-lhe, para domesticá-lo, passagens do Manifesto Comunista”.
Diria também que “tal hecatombismo demente, verdadeira literatura apocalíptica , vinha do além, mas na voz reconhecível de um líder mundial, ideólogo do Terceiro Mundo, e além do mais de um ídolo pop. Na realidade, era a voz de um morto antes de morrer. A morte de Che Guevara ocorreu quando ele se deixou capturar num vale boliviano rodeado de montanhas, numa emboscada estúpida”.
Vale a pena refletir mesmo décadas depois na percepção do intelectual cubano que renunciou compactuar com os desvios da revolução: “Quando se soube, em 1967, qual era a sua exata situação geográfica, Mario Vargas Llosa, que vivera anos na Bolívia e na época morava em Londres, declarou comentando o destino possível do Che: ‘Não há alternativa, ou ele se deixa capturar ou morre. Está sem saída. O que ele fez é suicídio’, e foi suicídio. Guevara na Bolívia, como antes em Cuba, se comportara como um suicida, e entre ser um fatigado herói político ou mártir de uma religião nova, escolheu o martirológio”.
Aos 90 anos morreu Fidel Castro, presumivelmente na cama ao contrário do que prognosticou Cabrera Infante, para quem o fim do tirano haveria de ser violento e sem glória. Contudo, acertou em cheio ao entrever a prática do suicídio como estofo freudiano da revolução cubana, ao retornar à suicida magna que foi Haydée Santamaria, “cujo suicídio comoveu o regime durante dez dias, não por sentimento diante do camarada caído, mas sua significação política, seu significado de ídolo que se quebra. Existem também os muitos mortos menores, fantasmas do comunismo que percorrem a ilha de Cuba com um lema: ‘Comunistas de Cuba, suicidai-vos. Não há nada a perder além da tampa dos miolos’. Ivan Schmidt