Em Bruzundanga é assim. Eles sempre se entendem. Na sátira à vida brasileira do início da primeira República, Lima Barreto criou um país fictício, com todos os problemas sociais, econômicos e culturais do verdadeiro. Onde impera a mediocridade, o oportunismo e o descaso pela vida dos pobres. O que continua realidade um século depois
Um homem uniformizado, com a insígnia de quatro estrelas no ombro da jaqueta, calçando reluzentes botas pretas, entra na sala de maneira inopinada. Seu lugar à cabeceira da mesa está reservado. Estavam aguardando-o. Todos os celulares são fechados. Sem esperar pelas formalidades habituais de apresentação, ele abre a reunião perguntando, com uma voz enérgica, que história é essa de terceira via. Afinal, nós já temos um candidato.
Com seus gestos, ele rompe o educado distanciamento típico que caracteriza essas reuniões. A seu lado estão pessoas que ocupam posições de destaque no topo da sociedade. São considerados líderes em seus setores, fontes para informação de jornalistas. Suas virtudes são exaltadas. Alguns possuem livros publicados, outros são dirigentes de grandes empresas e estabelecimentos do poderoso mercado bancário e financeiro. Três deles presidem as principais comissões das casas do Congresso.
Não há na mesa nenhum representante do Quarto poder. A reunião é fechada. Ao final, um desses cavalheiros será designado para fazer um “briefing” para a imprensa. Numa crônica veraz, esses senhores seriam classificados como de direita, mas na república dos Bruzundangas essa tipificação não é usada pela mídia. É considerada ofensiva. Situam-se ao Centro, com inclinação à direita. Os parlamentares são postos numa grande cesta, como se fosse um cestão, cujo nome soa como algo pejorativo.
Abro aqui um parênteses para informar ao leitor que esse país imaginário é calcado na invenção do escritor Lima Barreto, um carioca descendente de escravos. Em seu livro Os Bruzundangas, publicado postumamente em 1922, todas as mazelas brasileiras lá estão, entre elas o racismo e a pobreza. É um livro engraçado, que descreve de forma satírica uma sociedade em que as elites incultas enganam e dominam o povo e tudo fazem para a obtenção de títulos acadêmicos. Sua literatura é insossa e pernóstica.
Alguns dos indicados foram queimados, outros não conseguiram ascender, a maioria não tem credibilidade, para dizer o mínimo no entender deles mesmos. Nesse ponto, toma a palavra o banqueiro anfitrião. Veste um elegante terno preto e calça sapatos também pretos. Demonstra preocupação com o futuro do país. Critica a polarização e defende a construção de um nome alternativo, o terceiro. Não se cogita de uma mulher. Na mesa, misógina, o sexo de Simone Beauvoir não está representado.
A reunião dos pseudodoutores, como Lima chamava seus tipos, se dá na cobertura de um prédio na Avenida Faria Lima, convocados pelo CEO de um conglomerado financeiro. Na ordem do dia, uma questão que se tornou urgente com a aproximação do pleito presidencial: a escolha de um nome de confiança para representá-los na eleição que se aproxima. A crer no que dizem, precisam encontrar uma terceira via, já que, dos dois nomes colocados na disputa, um não serve mais e o outro não presta.
Com a autoridade de quem rejeita os radicalismos, ele põe no mesmo saco o fascismo criminoso de um, que chama de inaceitável, fingindo que o rejeita, e o demônio do velho populismo do outro, o sapo barbudo, que classifica de indesejável. Assim ele liquida a fatura, com a voz ponderada de uma “nova direita”, que se pretende civilizada. Nenhum dos nomes dos pré-candidatos é pronunciado.
No quartel as palavras usadas são outras. Acostumado às ordens de comando, insultos e ameaças das reuniões na caserna, o general quatro estrelas dá um murro na mesa. Que porra é essa de inaceitável e indesejável? Inaceitável é o comunismo, ou o seu fantasma. Não vim aqui para brincadeiras. Os senhores o elegeram. Agora querem falar em “barbárie bolsonarista”. Nós temos os tanques, seus covardes!
Agitou as mãos com impaciência. Depois desse estremecimento, olham-se durante alguns segundos, o general de Exército e o czar do mercado, certos de que daqui a pouco vão se estender as mãos, como já acontecera tantas vezes e registra a história recente desta infausta República. Seja para a reeleição do inaceitável, a escolha de um títere para a terceira via de mão única, ou um golpe a ser chamado de intervenção para salvar a democracia.
Em Bruzundanga é assim. Eles sempre se entendem. Na sátira à vida brasileira do início da primeira República, Lima Barreto criou um país fictício, com todos os problemas sociais, econômicos e culturais do verdadeiro. Onde impera a mediocridade, o oportunismo e o descaso pela vida dos pobres. O que continua realidade um século depois.
A terceira via, um engodo criado de forma intelectualmente desonesta pelos doutores, representa um veto ostensivo e antidemocrático ao candidato indesejável, o metalúrgico Lula da Silva, duas vezes eleito presidente, que lidera as pesquisas. Ele é o cara que fala em salário, emprego, comida, escola, dignidade e futuro. Que deu voz aos oprimidos, Não veio do mercado, Veio da terceira margem, do mesmo país do descendente de escravos Lima Barreto.