
Espectadores obsessivos, assistíamos ao luxo e ao lixo com a mesma desenvoltura. Afora, claro, as reprises. Só o clássico Pierrot, le fou, de Godard, não exagero, assistimos aí umas oito, nove vezes. Sei de cor, até hoje, trechos inteiros dos diálogos de Ferdinand e Marianne… Isso para não referir, entre outros, Truffaut, Ford, Visconti, Glauber, Buñuel. Mudei eu ou mudou o cinema? Saindo, na semana, de uma sessão de Volver, de Almodóvar, concluo, ainda outra vez, que mudamos ambos: mudou o cinema e mudei eu.
Com o detalhe de que em se tratando do gênio espanhol, o cinema sempre muda. Para melhor. Tendo a bela Penélope Cruz como a personagem principal de um filme que conta a história aparentemente banal do machismo pós-franquista, que perdura na Espanha feito uma praga, Volver, terrível como a vida, é um retorno de Almodóvar à raiz molecular de suas melhores narrativas: às mulheres, sempre as mulheres, à obsedante fixação materna, à quixotesca La Mancha natal (região ao sul de Madri), e a uma de suas primeiras parcerias, com a veterana e excepcional atriz Carmen Maura. Ainda que sob o risco aqui de parecer simplista informe-se que Volver narra, de modo patético, e quanto mais patético, ainda mais assumidamente melodramático, a história de certa mãe que, tida como morta, assim reaparece, para cuidar das filhas e da neta numa situação de desatinada aflição. Este o cerne e o sumo. Tudo o mais é, de novo, puro Almodóvar. O que conta no cineasta, sobretudo (não é mesmo, Almir Feijó?), é o autêntico “paracinema” no que é mestre consumado. Anota, cita, remete, refere e exalta a grandeza desta arte que parece estar indo a pique em meio ao lixo televisivo ao qual, em nossos tempos bicudíssimos, se vê obrigada a pagar tributo.
80% da mais recente produção cinematográfica tupiniquim (quem contestar há-de?) sugerem canhestros especiais de TV. A arte da grande tela, destinada a reunir num mesmo espaço os mais díspares espectadores, ritualística e insubstituível, cedeu lugar ao chamado “formato” televisivo, às “séries” globais, de duvidoso quilate, nas salas dos shoppings. Melhor ficar em casa.
Wilson Bueno (3/12/2006) O Estado do Paraná