A vida dos objetos

Jung tinha um nome pra cada uma de suas panelas

Jung tinha um nome específico pra cada uma de suas panelas. Quem disse foi minha tia Noca, animista como Jung, que acredita na alma dos objetos e das plantas. Tenho certa dificuldade em ver personalidade nas panelas. Mas acho que foi a vida que me estragou.

Depois de ver “A Bela e a Fera”, em que um candelabro já tinha sido um mordomo francês, imaginava quem tinha sido minha poltrona: um ruivo gorducho de pés peludos. O cinzeiro da sala imaginava um doido grisalho, condenado por, em outra encarnação, fumar demais. Tinha me esquecido disso até virar pai.

Minha filha tem um ano, dez meses e uma multidão de amigos inanimados. A sala da nossa casa é uma espécie de Disneylândia particular, onde tudo tem nome, sono, fome. Não pode ver um objeto  —um chinelo, uma colher, um controle remoto— que pega no colo e balança como um bebê. “Shhh”, ela diz. “Tá mimindo.” Outro dia levantou a blusa e deu de mamar a um pato de crochê até constatar, pra si mesma, que ele já não estava acordado: “Dormiu no peito”, disse.

Apesar de muito carinhosa com objetos inanimados, às vezes se irrita com os colegas de carne e osso e acaba mordendo seus bracinhos. Já tentamos ensinar de mil formas. “Não pode morder, tá?”, mas ela não responde. Já tentamos um pouco de psicanálise: “Por que você fez isso?”, e ela obviamente não responde e logo percebemos o ridículo de fazer psicanálise com um bebê.

Outro dia brincava com um coelho de pelúcia e o pato de crochê. De repente vejo que o seu dedo estava em riste. “Por que você isso?”, perguntava pro coelho. E continuava, sem levantar o tom de voz. “Não pode morder, tá?”

Não sei se minha filha já entendeu que não pode morder. Mas o coelho parece ter entendido. E isso é um bom começo. E eu, sentado no sofá, entendi um monte de coisa. Entendi por que a gente põe alma nas coisas, e encena peças, e pra que servem as histórias e os mitos —pra ensinar pros outros o que a gente ainda não sabe.

Meu avô Carlos, analista junguiano, tinha uma coleção enorme de bonecos e deitava no chão pra contar histórias sobre o bem e o mal. Não lembro das histórias, mas lembro dele deitado no chão, rodeado de netos e bonecos, em pé de igualdade.

Meu avô mal conheceu minha filha. Morreu no começo deste ano. Mas acho que teriam muito assunto, os dois. E talvez estejam tendo, vai saber, caso esteja vivo em alguma panela, ou algum pato de crochê.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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