Logo percebeu que fizera besteira, arrependeu-se, mas aí já era tarde demais. Foi censurado, punido e tirado do ar pelos próprios parceiros que incensara. Mas tinha lá as suas virtudes. Por exemplo: abrigou em sua casa, em Petrópolis, na zona serrana do Rio, perseguidos pela ditadura, como as atrizes Leila Diniz e Márcia de Windsor, por sinal ambas juradas de seu programa.
A lembrança de Flávio deve-se ao livro que acabo de ler (“Senhor TV – A vida com meu pai, Flávio Cavalcanti”, (Matrix Editora, 2021), escrito pelo filho Flavinho. O livro, parcial por certo, não traz maiores novidades, além daquelas já conhecidas pelo público e pela imprensa da época. Mas merece citação.
No fim da vida, com a derrocada final dos Diários e Emissoras Associados, dos quais faziam parte as TVs Tupi (do Rio e de São Paulo) e o desinteresse das demais televisoras, Flávio viveu momentos difíceis, acrescidos com o agravamento da doença da esposa Belinha, a falta de dinheiro e a perda da casa de Petrópolis, hipotecada para fazer frente às despesas. Fez uma experiência na Rede Bandeirantes de Televisão e acabou sendo acolhido por Sílvio Santos, do SBT, onde, a despeito das divergências com o patrão, passou os últimos três anos de sua vida.
Na noite de quinta-feira 22 de maio de 1986, Flávio estava no ar com seu programa semanal. Anunciou a entrada dos comerciais e não voltou mais ao palco. Acabou sendo levado ao Unicor paulista com uma isquemia coronariana. Quatro dias depois, já fora da UTI, teve uma parada cardíaca fatal. Cinco horas de tentativa não conseguiram reanima-lo. E o SBT saiu do ar naquele dia/noite em sinal de respeito.
Apesar da personalidade polêmica e controvertida e dos exageros diante das câmaras, Flávio Cavalcanti teve a sua importância como repórter e apresentador de televisão. E grandes momentos de humanidade. Como, por exemplo, no bilhete que deixou ao neto Jarbas:
“Quero dizer-lhe, meu neto, que vale a pena.
“Vale a pena crescer e estudar. Vale a pena conhecer pessoas, ter amigos, ter namoradas, sofrer ingratidões, chorar por algumas decepções e – a despeito disso tudo (ou por causa disso tudo) – ir renovando todos os dias a sua fé na bondade essencial da criatura humana e o seu deslumbramento diante da vida. Vale a pena verificar que não há trabalho que não traga a sua recompensa; que não há livro que não traga ensinamento; que os amigos têm mais para dar que os desafetos para tirar; que, se formos bons observadores, aprenderemos tanto com a obra do sábio quanto com a vida do ignorante. Vale a pena ver que toda amargura nos deixa reflexão, toda tristeza nos deixa a experiência, todo sofrimento nos faz crescer e a alegria nos enche de luz.
“Vale a pena ter caráter, ser honesto, justo e desprendido das coisas materiais. Vale a pena ter ideais e lutar bravamente por eles.
“Vale a pena viver nestes assombrosos tempos modernos em que os milagres acontecem ao virar de um botão ou ao pressionar uma tecla; em que se pode telefonar da Terra para a Lua; lançar sondas espaciais, máquinas pensantes, à fronteira dos outros mundos. E descobrir na humanidade que toda essa maravilha tecnológica não consegue, entretanto, atrasar ou adiantar um segundo sequer a chegada da primavera.
“Vale a pena saber que os cientistas e especialistas revelarão coisas que a mim não foram reveladas. Você certamente conhecerá seres vindos de outras galáxias e de outras dimensões, o que para mim é uma certeza, para meus pais foi uma teoria e para meus avós mera especulação.
“Vale a pena, mesmo quando você descobrir que tudo isto que eu estou tentando lhe ensinar é de pouca valia, porque a teoria não substitui a prática e cada um tem de aprender por si mesmo que o fogo queima, que o vinagre amarga, que o espinho fere e que o pessimismo não resolve rigorosamente nada.
“Vale a pena até mesmo envelhecer como eu e ter um neto como você, que me devolveu a infância”.
Como se vê, sempre se pode tirar algo de bom do ser humano, tenha ele vivido de um jeito ou de outro.