A polêmica sobre o aborto remete ao postulado de Ludwig Wittgenstein segundo o qual todo problema filosófico é, antes de tudo, um problema de linguagem. A discussão é polarizada e violenta porque os interlocutores têm compreensões muito distintas sobre termos fundamentais ao debate.
Cada grupo utiliza as palavras como peças de tabuleiro em jogos de linguagem com regras específicas.
Favoráveis à criminalização da prática acusam dissidentes de apoiarem assassinatos; defensores da despenalização imputam ódio às mulheres aos seus opositores. No entanto, o cerne da cizânia está no significado da expressão “ser humano”.
Opositores ao aborto consideram que a junção do óvulo com o espermatozoide já constitui um indivíduo da espécie homo sapiens —ou ao menos um homem em potencial. A consequência lógica é tratar o procedimento como homicídio. Há um nobre imperativo ético, portanto, na defesa da criminalização.
Da mesma forma, não faz sentido dizer que apoiadores da descriminalização defendem assassinatos. Para nós, a junção de células reprodutivas ou um embrião não é um um ser humano, mas parte do corpo da mulher. A lei, de certo modo, também assim vê: a pena por aborto é consideravelmente menor do que a de homicídio e um feto sem vida não recebe certidão de óbito.
A ciência ainda não traçou exatamente a linha que separa o feto do ser humano, mas há evidências biológicas dessa cisão que podem ser usadas como critérios —como quando o embrião passa a responder a estímulos (final do primeiro trimestre de gestação), por exemplo.
Esse foi o utilizado pela ministra do STF Rosa Weber. Seu voto a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação reacendeu o debate polarizado e moralista que não chega a lugar algum. Acusações de assassinato e misoginia não geram convencimento. Enquanto não chegarmos a um consenso sobre o sentido das peças no tabuleiro, não conseguiremos jogar, e há vidas em jogo.