É o fim do sigilo e da privacidade — exceto para trambiques e propinas
Uma amiga minha foi flagrada outro dia aos beijos com uma famosa cantora no elevador de seu prédio. Os porteiros viram a cena pelo monitor, os vizinhos ficaram sabendo e houve certo tititi —não pelos beijos, mas por serem com a famosa cantora. E se você acha que, por levar uma vida opaca e neutra, está a salvo de ter sua intimidade exposta, engana-se. As câmeras do seu prédio registram quando, sozinho no elevador ou saindo do carro na garagem, você espirra, se coça ou tira ouro do nariz. A poucos metros dali, há um porteiro vendo tudo, numa tela cheia de telinhas.
As câmeras nos seguem pelas calçadas, suspensas nos postes e portões. Mesmo quando cochichamos com um amigo em qualquer lugar, pode haver alguém lendo nossos lábios. E, no futebol, não é mais possível dar um discreto toco no adversário ou fazer de conta que a bola bateu na nossa mão —o VAR, esse monstro de mil olhos, avisa logo o juiz.
Uma consulta ao Google sobre o assunto mais bobo deflagra uma operação digital, em que todos os nossos gostos pessoais se tornam do conhecimento da Amazon, e esta começa a nos bombardear com anúncios. Enfim, não há mais sigilo ou privacidade.
Nem os bebês estão a salvo. Um tradicional fabricante de fraldas inventou um sistema em que um sensor inserido nelas avisa quando eles fazem xixi ou cocô, e manda um alerta aos pais através de um aplicativo. Outra empresa criou chupetas que avisam a hora de botar o garoto para mamar. E ainda outra oferece um aparelho para tapear o bebê reproduzindo a voz de sua mãe.
E, naturalmente, todas as nossas conversas, por telefone, email e celular, legais ou ilegais, estão sendo escutadas, gravadas e hackeadas, e, um dia, serão usadas contra nós. Exceto as que envolverem trambiques, propinas e cabeludas movimentações financeiras. Estas estão a salvo de investigação —a não ser que autorizada pelo ministro Toffoli.