Alguém de olho ou na escuta

É o fim do sigilo e da privacidade — exceto para trambiques e propinas

Uma amiga minha foi flagrada outro dia aos beijos com uma famosa cantora no elevador de seu prédio. Os porteiros viram a cena pelo monitor, os vizinhos ficaram sabendo e houve certo tititi —não pelos beijos, mas por serem com a famosa cantora. E se você acha que, por levar uma vida opaca e neutra, está a salvo de ter sua intimidade exposta, engana-se. As câmeras do seu prédio registram quando, sozinho no elevador ou saindo do carro na garagem, você espirra, se coça ou tira ouro do nariz. A poucos metros dali, há um porteiro vendo tudo, numa tela cheia de telinhas.

As câmeras nos seguem pelas calçadas, suspensas nos postes e portões. Mesmo quando cochichamos com um amigo em qualquer lugar, pode haver alguém lendo nossos lábios. E, no futebol, não é mais possível dar um discreto toco no adversário ou fazer de conta que a bola bateu na nossa mão —o VAR, esse monstro de mil olhos, avisa logo o juiz.

Uma consulta ao Google sobre o assunto mais bobo deflagra uma operação digital, em que todos os nossos gostos pessoais se tornam do conhecimento da Amazon, e esta começa a nos bombardear com anúncios. Enfim, não há mais sigilo ou privacidade.

Nem os bebês estão a salvo. Um tradicional fabricante de fraldas inventou um sistema em que um sensor inserido nelas avisa quando eles fazem xixi ou cocô, e manda um alerta aos pais através de um aplicativo. Outra empresa criou chupetas que avisam a hora de botar o garoto para mamar. E ainda outra oferece um aparelho para tapear o bebê reproduzindo a voz de sua mãe.

E, naturalmente, todas as nossas conversas, por telefone, email e celular, legais ou ilegais, estão sendo escutadas, gravadas e hackeadas, e, um dia, serão usadas contra nós. Exceto as que envolverem trambiques, propinas e cabeludas movimentações financeiras. Estas estão a salvo de investigação —a não ser que autorizada pelo ministro Toffoli.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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