Mesmo com a campanha passando ao largo da pauta racial como pontuei semana passada, as eleições gerais 2022 conseguiram explicitar que há candidato que considera a negritude uma característica incapacitante —ou um demérito pessoal.
Isso explica que um postulante a governador, especialmente de um estado de maioria negra como é o Piauí, possa ter considerado elogiosa a afirmação “você é quase negra na pele, mas é uma pessoa inteligente […]“, feita à jornalista que o questionou sobre planos para mulheres e minorias.
O abismo entre a elite e a realidade da maioria do povo (56% dos brasileiros são autodeclarados negros) é tão profundo que faz com que os negros tenham todos os indicadores sociais inferiores aos dos brancos. Também permite ecoar o pensamento torpe e infundado que associa um grupo étnico a tudo o que há de ruim.
Quem se dispõe a olhar com um pouco de atenção enxerga o cenário funesto no qual paira uma névoa de permanente desconfiança sobre pretos e pardos como se apenas em caráter excepcional um negro pudesse portar atributos —ou ser um “cidadão de bem”.
O comentário do leitor Ricardo Batista sobre minha coluna “Uma voz das ruas“, publicada na Folha em 29 de agosto de 2022, ilustra a situação: “Texto pungente. Outro dia tive que ciceronear um estrangeiro em passagem pelo Brasil, e ele me relatou: ‘cara, não sabia que o Brasil era tão racista. Me olham sempre como se eu estivesse prestes a tirar uma arma da bolsa e anunciar um assalto’.”
O depoimento contundente encontra respaldo na percepção da carioca Rita Monteiro, moradora do Reino Unido há 22 anos, com quem conversei. Ela tem clareza da distinção entre ser negro no Brasil e na Inglaterra. “Existe racismo, mas o negro em Londres tem direitos”. Não vive sob pressão, não é tratado pela polícia como bandido, nem tem a capacidade intelectual avaliada pela cor da pele, por exemplo. Às vésperas do bicentenário da Independência, fica a reflexão sobre a nação que podemos ser.