Aquela chorada

Eu tentei chorar para provar que ainda existe chorar, mas acabou o horário

Preciso dar uma daquelas longas e dramáticas choradas no banho, mas estou sem agenda. Se eu perder nove minutos do meu dia chorando vai melar toda uma logística que me conecta deste segundo até março do ano que vem.

Já pensei em chorar enquanto dirijo, mas isso roubaria o protagonismo dos tão necessários podcasts de notícias —até porque, quando fico com o nariz entupido, acabo um tanto surda.

Voltei a cogitar o banho, mas ele se tornou mais uma das coisas “otimizadas” do meu dia, pois é sempre com minha amada filhotinha que divido esses 17 minutinhos contando com o tempo para vesti-la.

Passo o dia culpada querendo estar com minha filha, então jamais perderia meu tempo comigo mesma quando posso estar com ela.

Seria estranhíssimo a mamãe brincando de “o barco da Peppa dá carona para a família de bebês dinossauros” enquanto esmurro o peito e me encho de muco nasal.

Semana passada fiz ressonância do joelho e me preparei para dar aquela bela chorada, mas eu estava tão cansada que apenas capotei. Adorei e marquei mais. Por favor, me coloquem em um tubo apertado e me peçam pra ficar parada por uma hora!

Na terapia, quase sempre estou muito ocupada em entreter a minha analista, pois eu não sei ficar na presença de outro ser humano sem achar que é minha obrigação falar alguma gracinha para que ele não ache insuportável ter nascido.

Se a pessoa fica séria ao meu lado é como se eu estivesse segurando uma arma apontada para a sua cabeça e dizendo “passa pra cá esses 40 minutos que você poderia estar hipnotizada pela magia cômica da vida, mas está aqui comigo”.

Tentei jantar chorando ontem, mas era uma sopinha maravilhosa que minha mãe tinha feito para melhorar a minha gripe e ela acharia que eu estava odiando a sopa e não poderia fazer isso com ela.

Aliás, foi terrível ficar doente sem ter agenda pra ficar doente. Tive que ignorar a enfermidade ou cagaria toda uma logística que vai de hoje até março do ano que vem.

Tentei chorar assim que deitei na cama, mas eu ficaria, conforme já citei, completamente entupida e acordaria meu marido com as assoadas grosseiras de nariz ou, pior, respiraria toda a noite pela boca, o que me deixaria cheia de gases. Não tenho agenda no momento pra ficar cheia de gases.

Tentei chorar hoje enquanto gravava um dos podcasts que inventei ou fazendo um dos roteiros que estou escrevendo ou tentando terminar meu livro ou digitando essa coluna ou lendo os livros para a seção de resenhas que enchi o saco para que este jornal me desse ou na minha aula de psicanálise ou parada no trânsito voltando de uma reunião bizarra em que uma mulher tentou me convencer que a comédia nacional é melhor que a internacional na opinião dos entrevistados e que esses entrevistados não eram ETs ou pessoas querendo emprego nesse lugar para o qual responderam essa pergunta.

Mas não pude chorar porque estava focada demais fazendo essas 793 coisas que preenchem meu dia de alegrias e desafios e sanidade mental e também de uma saudade insuportável da minha filha.

Mas que também me deixam cansada demais e culpada demais e profundamente louca e triste e maníaca e eu não aguento mais não poder ficar em paz e em silêncio.

Tentei chorar nos três minutos que agendei para ficar em paz e em silêncio que é quando faço cocô, mas eu também otimizo esse tempo respondendo a emails e WhatsApps e inbox e direct.

Pedi ao meu psiquiatra que me ajudasse a chorar, mas ele disse que isso ele nunca tinha ouvido, e eu tentei chorar para provar que ainda existe chorar, mas acabou o horário.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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