As artimanhas do medo

Tenho observado, não sem surpresa, que embora estejamos mergulhados no início de novo século e de novo milênio marcados pelo medo, pouco ou quase nada se fala do sentimento obtuso. Como se vivêssemos o melhor dos mundos e não nos enregelasse a espinha, a cada segundo, das manchetes dos noticiários ao prosaico cotidiano que nos envolve – no carro, na rua, em casa, no trabalho.

A etimologia da palavra é bem obscura, com alguns especialistas atribuindo-a aos “médos”, habitantes da Média, região da Ásia, atualmente parte do Irã, e que eram tidos e havidos como irascíveis guerreiros. Daí, desde a origem, o medo aos “médos”… E como quem conta um conto aumenta um ponto, a palavra – e todo o desconforto que é sua essência – foi se integrando ao imaginário das gentes. Por extensão, arrepiando…

Sabia ainda o preclaro leitor que, em pesquisa mais ou menos recente, patrocinada por uma revista eletrônica francesa, o medo ganhou disparado na qualidade de o sentimento mais freqüente entre os humanos? Aqui, na China ou na Bahia? Pois foi ele, leitor, quem obteve a melhor pontuação entre as coisas & loisas do insensato mundo que nos foi dado viver.

Franz Kafka (1883-1924), sem exagero, um dos mais intrigantes escritores de todos os tempos, anota em seu diário, com argúcia de gênio atormentado, a complexa travessia que enfrentava, todos os dias, na hora de acordar. Entre o sono matinal e o despertar, o judeuzinho de Praga tremia nas bases. Mais ainda depois que, evadido do sono, ao olhar em torno percebia que o espreitava, ainda outra vez, a vida – com suas armadilhas e ciladas.

A arriscada empresa de mais um dia o fazia verter suores gelados e Kafka anota o renovado horror de acordar, em nova manhã, para “o abismo em aberto” de estar vivo. Com tudo o que isto implica – da morte pessoal, sempre possível, às mil e uma mortes que nos assinalam a existência provisória. Medo – esta a palavra, e que o autor de A metamorfose não hesita em destacar do seu invariavelmente sombrio dicionário.

Por último, mas não menos importante, convém lembrar, a título de fecho destas linhas – talvez libertadoras, pelo que iluminam do sentimento lúgubre e nos informam que não estamos sozinhos em nossos receios e temores -, os versos antológicos de Carlos Drummond de Andrade em Congresso Internacional do Medo :

“Provisoriamente não cantaremos o amor,/ que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos./ Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,/ não cantaremos o ódio porque esse não existe,/ existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,/ o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,/ o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,/ cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,/cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,/depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.” Isso aí é de 1940, gentil leitor ! Muitos de nós nem havíamos nascido…

11|02|2007

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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