Beijos proibidos

Às vezes, precisamos de alguém de fora para nos revelar quem somos e como somos

Manier Sael, um imigrante haitiano em São Paulo, deu uma tocante entrevista à Folha há alguns dias. Contou que, ao chegar ao Brasil, em 2013, e ao começar a namorar a brasileira que se tornaria sua mulher e mãe de sua filha, disse-lhe que tinha um desejo: beijá-la em público, na rua. “No Haiti, isso não existe”, ele explicou. “É uma coisa que eu nunca tinha visto na vida real, só na televisão. Ela falou que tudo bem. Como eu me senti nessa hora [ao beijá-la]? Me senti brasileiro”.

É interessante como, às vezes, precisamos de que alguém de fora venha nos revelar quem somos ou como somos. Haverá coisa mais corriqueira no Brasil do que beijar em público? Pelo menos, é o que pensamos —e considerando quantas vezes não fizemos isso sem o menor problema, será preciso um exercício intelectual para nos lembrar de que pode ter havido exceções à regra.

Duas progressistas cidades do interior de São Paulo, São Joaquim da Barra e Sorocaba, já tiveram juízes que proibiram beijos em praça pública. E isso não foi no século 19, mas nos anos loucos de, respectivamente, 1980 e 1981. Até a proibição ser revogada por ridícula, vários casais foram parar na cadeia.

Um dos restaurantes mais aconchegantes do Rio, a Adega Flor de Coimbra, desde 1938 na rua Theotonio Regadas, na Lapa, até hoje ostenta na parede um quadro dos velhos tempos: “Proibido beijos ousados”. O quadro continua lá pelo folclore, claro —mesmo porque, tendo pedido sua feijoada à Souza Pinto, com feijão-manteiga, carnes nobres e farofa de torresmo, quem pensará em dar beijos, mesmo ousados?

E uma querida senhora que conheci, ao ver um casal se beijando na novela da TV, deu um profundo suspiro e, do alto de seus 90 anos, exclamou, talvez sem se dar conta de que todos na sala podiam escutá-la: “Eu nunca fui beijada!”. Ali, naquele momento, todos nos conscientizamos da nossa tremenda fragilidade.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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