Depois da Polícia Federal bater na porta de blogueiros governistas, políticos e empresários bolsonaristas, à cata de provas para o inquérito das fake news, do STF, um grupo importante de bolsonaristas fez uma live para tratar do assunto. Foi mais um “gabinete de crise”, em época muito apropriada para isso, mas como acontece quando bolsonaristas se juntam, nada foi esclarecido e a crise aumentou, muito em razão dos nomes que se juntaram neste encontro montado às pressas, no final do dia em que a PF visitou olavistas e bolsonaristas.
O grupo se juntou em uma live do site Terça Livre, de Allan dos Santos, um dos investigados que teve materiais apreendidos em sua casa pela polícia. O dono do site, que é muito malfeito, se apresenta como “pai, empresário, jornalista e apresentador do Boletim da Manhã no canal Terça Livre TV”. O “canal” a que ele se refere é uma página no Youtube.
Na verdade, Allan é mais um desses youtubers de direita que grudaram na candidatura de Jair Bolsonaro para depois gravitarem em torno do governo. São ativistas profissionais, que se estabeleceram com prosperidade a partir da subida de Bolsonaro ao poder, de um modo parecido ao que figuras da esquerda fizeram enquanto o PT esteve no poder.
Tendo Allan dos Santos como apresentador e uma espécie de âncora, a live juntou os deputados bolsonaristas Bia Kicis e Eduardo Bolsonaro, mais Olavo de Carvalho e Ítalo Marsili, que recentemente esteve cotado para ser ministro da Saúde, mas parece ter sido descartado depois da imprensa levantar coisas duvidosas que ele andou fazendo. Pelo jeito, terá que colocar no currículo apenas o cargo de “quase ministro do governo Bolsonaro”.
Bem, é uma live que não mereceria atenção se esse grupo não tivesse ligação com o presidente Jair Bolsonaro. Sem essa ligação não haveria como ter disposição para assistir a algo tão grotesco, que serve como demonstração prática da precariedade absoluta de uma das bases essenciais do bolsonarismo, na sua promessa de transformação cultural, no plano geral da vida brasileira. Esta foi uma bandeira importante, que teve certa influência na última eleição.
A sustentação, digamos, intelectual do bolsonarismo está nas figuras desta live. São os cabeças do projeto cultural da direita, ao qual se pode juntar mais uma ou duas dezenas de figuras de qualidade parecida, alguns até de nível intelectual e político mais baixo. Sim, isto é possível: o bolsonarismo é uma pirambeira braba em todos os setores, com uma queda no abismo quando a sustentação depende do ato de pensar.
É tamanha a confusão desse pessoal, que eles não conseguem nem manter uma linha de raciocínio que siga uma pauta de tanta objetividade como a que os empurrou a um debate: o inquérito das fake news, com a conseqüente visita da PF a bolsonaristas investigados pela suspeita de envolvimento com a produção de notícias falsas e outros possíveis crimes. O tema é quente e dele poderia sair uma conversa produtiva, mas eles se perdem em um emaranhado de divagações sem relação com o assunto colocado em pauta pela polícia.
Ameaçam, falam mal da China, contam façanhas, muitas delas, sem deixar também de atacar o Foro de São Paulo, esta teoria da conspiração que Olavo de Carvalho repete sem parar mesmo depois do PT ter sido enxotado do governo — sofrendo um impeachment e com a prisão de Lula — e o Brasil ter atualmente um governo de direita.
Dentre as muitas façanhas, ficamos sabendo que a deputada Bia Kicis acredita até agora no sucesso da sua atuação na CPI das fake news, uma comissão perigosíssima para o governo Bolsonaro, que por sinal se junta ao inquérito do STF. Evidentemente Bia Kicis deveria ter atuado melhor antes, para que a CPI não fosse instalada. A deputada lembra bastante a petista Gleisi Hoffmann, que até hoje acha que falou poucas e boas para a oposição durante o impeachment de Dilma Rousseff.
Ítalo Marsili é outro exemplo de sucesso. Ele não passa de um psiquiatra que precisa de psiquiatra. O sujeito sabe de tudo, com determinação total inclusive em assuntos que não teve tempo de estudar. Mas tem também as façanhas de Allan dos Santos, um sujeito muito distraído, que confunde fatos, esquece nomes, tem dificuldade com datas e muitas vezes lhe fogem palavras essenciais para o que está pretendo falar. Este é o feliz proprietário do Terça Livre. Sobre o ministro Alexandre de Moraes ele tem opiniões firmes. “Moleque, ele é um moleque. Só que mais que isso, ele é um criminoso”, foi sua definição sobre o ministro do STF na espantosa live.
O estilo é muito parecido com o de Olavo de Carvalho, mestre de todos que estavam presentes e guru do presidente. Olavo anda numa fase revolucionária, com ideias de armar o povo e intervir em instituições que na sua visão prejudicam o governo Bolsonaro, como o STF e no Congresso Nacional, se possível com a entrada dos militares nessa briga.
O velho professor anda mesmo violento. Vejam um trecho importante do que ele disse na live: “Pra mim esse senhor Alexandre de Moraes tem que ser posto na cadeia e não ter o direito de falar. Olha, eu sou a favor da pena de morte pra esses casos. Porque isso aí é uma perversão. Com base nessa perversão já se mataram milhões, milhões e milhões de pessoas e continuam matando. Com a sua ajuda, senhor Alexandre de Moraes. Você é um genocida.”
Olavo costuma falar demais em algo que chama de “gramscismo cultural”, mas se comporta, fala e escreve como alguém que desconhece a obra de Antonio Gramsci. Não digo que ele não tenha lido seus livros, no entanto o conteúdo real de Gramsci se perdeu na interpretação mentalmente fechada de Olavo, de uma estreiteza bastante comum no que ele apresenta como filosofia própria, que na verdade é mais um apanhado de suas leituras, com conteúdos que inclusive se contradizem no entremeio do pacote fechado que parece ter sido compactado à marretadas.
Ainda que tenha lido Gramsci, não compreendeu o modo de usar. Contradizendo o que está na obra do pensador italiano, Olavo entra no embate político dando cabeçadas, ao contrário do que se aprende com Gramsci, que demonstra com inteligência que na política a cabeça deve ser usada de outro modo. Olavo tem um plano para o qual ele se empenha brutalmente em construir um contexto. Nisso, Bolsonaro parece seguir o mestre. Tentam criar uma conturbação política grave, usando para isso até mesmo uma ameaça comunista, fantasma que no mundo todo já se sabe que não ronda lugar algum.
É óbvia a tentativa de repetir 1964, ao menos nas alegadas motivações dos militares na época para derrubar João Goulart, com uma diferença nesta imitação pretendida por Olavo, já que agora eles estão no governo: o plano é o de fingir um contragolpe, contra uma conspiração da oposição, que junta o gramscismo, o Foro de São Paulo, George Soros, o STF e o Congresso Nacional, o governo da China e outras ardilosas figuras do Mal, inclusive aquele comunista do João Doria.
É um plano muito louco, convenhamos, para o qual falta inclusive um contexto para ser bem encaixado. Parece improvável, mas não convém fechar os olhos ao risco. Da última vez que os brasileiros descuidaram do perigo, deu nisso que aí está.