Boletim de Ocorrências

Numa das primeiras páginas do livro Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia, o autor Nelson Motta faz um rápido esboço do personagem: Minha filha ganhou um gatinho e contei a Tim que ela ia dar o seu nome ao bicho. Ele adorou: “Já sei, porque é preto, gordo e cafajeste!”. O gato era cinzento, magrinho e carinhoso, e só nos deu alegria.

No final da leitura, o retrato do grande cantor e compositor surge mais completo: preto cinzento, gordo, carinhoso e muito cafajeste. Faço dois reparos deste novo sucesso de Nelsinho Motta. Resta impressão que o autor não contou tudo, poupou detalhes mais sórdidos do amigo. Quanto ao título da obra, outro seria mais apropriado: “Boletim de Ocorrências”. Ou “BO”, de tantas encrencas em que o elemento Sebastião Rodrigues Maia andou se metendo mundo afora.

“Síndrome de Tim Maia” era o que aniquilava os empresários quando a multidão comprava ingresso, comparecia no horário e a estrela não comparecia. Os inúmeros calotes registrados na biografia de Tim Maia lembram uma história parecida que ocorreu em Curitiba no final da ditadura militar, no início da campanha pela anistia.

Ativista político, o presidente do diretório acadêmico de Engenharia colocou em pauta de reunião a realização de show no auditório do Colégio Estadual do Paraná para arrecadar fundos pró-anistia, ampla, geral e irrestrita!

Todos votaram a favor, o artista escolhido por unanimidade foi o cantor e compositor João Bosco.

— Eu até tenho um amigo no Rio de Janeiro que tem o telefone dele – se prontificou um companheiro.

Na mesma noite, o presidente do diretório telefonou para o número do artista:

— Boa noite, João Bosco! Aqui é de Curitiba, gostaríamos de promover um show com o senhor para a campanha da anistia.

— Ótimo!

— Só tem um problema: não temos dinheiro para a passagem!

— Sem problema!

— Nem dinheiro para a hospedagem!

— Sem problema!

— E também não temos nenhuma garantia de quanto será o cachê, vai depender de quantos ingressos vamos vender.

— Sem problema!

No dia seguinte, nova reunião de diretório.

— Falei com João Bosco e sem problemas: passagem de avião, hospedagem, alimentação é por conta dele. O cachê fica dependendo de quanto vamos arrecadar.

—Perdão, presidente! Isso só pode ser trote. Qual artista famoso vem fazer um show assim, praticamente de graça? Tem certeza que falou com o próprio João Bosco?

Todos ficaram com a pulga atrás da orelha. Na mesma noite e horário, novo telefonema para o
Rio de Janeiro:

— Boa noite, é o João Bosco? Tem certeza que é o próprio?

Era o próprio. E o próprio confirmou a realização do show. Nova reunião do diretório, novo relatório da conversa com João Bosco… mas ninguém ficou plenamente convencido, a pulga insistia em ficar atrás da orelha de todos. Inclusive do distinto público universitário, que também não acreditava que o artista famoso comparecesse, assim tão graciosamente.

E não é que João Bosco compareceu, na data e horário? Só quem não compareceu foi o público. Bem menos da metade dos ingressos foram vendidos, e da bilheteria do Colégio Estadual sobraram centavos para a campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita.

****

“Síndrome de Tim Maia”, às avessas, é um distúrbio que muito acontece em Curitiba. Muitas vezes, os patrocinadores comparecem, os empresários comparecem, os artistas comparecem, só quem não comparece é o distinto público.
Dante Mendonça [05/12/2007] O Estado do Paraná

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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