Existem situações na vida que são uma contradição por princípio: lutar contra o racismo e apoiar Bolsonaro é uma delas. Quarta-feira, 28 de setembro, o atual presidente fez uma visita de explícito cunho eleitoreiro — porque tudo tem esse cunho a três dias da eleição —, ao Instituto de Neymar e ganhou de presente um simpático vídeo público do craque da seleção agradecendo pela gentileza da visita.
No Instituto de Neymar, Jair Bolsonaro foi recebido com festa, erguido como herói. Que alguém, a essa altura da destruição e às vésperas da eleição mais importante da história desse país, faça declaração de simpatia a Jair Bolsonaro é da ordem do inominável.
Que essa pessoa seja nosso maior craque semanas antes de jogar uma Copa do Mundo é da ordem da catástrofe. A administração de Jair Bolsonaro foi devastadora para o Brasil, verdade, mas ela foi ainda mais devastadora para as pessoas negras.
No Brasil, não podemos separar raça de classe. Um país erguido sobre quatro séculos de trabalho de pessoas escravizadas, riquezas monumentais acumuladas nas costas desse trabalho. Nenhuma política de inclusão social quando o horror da escravidão foi formalmente interrompido.
Pessoas negras jogadas à margem, largadas ao desaparecimento — uma ideia defendida de forma explícita pela classe dominante da época.
Nunca reparamos os erros e os crimes cometidos contra as pessoas negras desse país e, por isso, não podemos falar em classe sem falar em raça.
As políticas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro e de Paulo Guedes não apenas ignoraram qualquer tipo de reparação, como incentivaram que as classes mais baixas desse país fossem jogadas na linha da pobreza extrema.
Durante a pandemia, Bolsonaro fez de tudo para não interromper o contágio, deixou de comprar vacinas quando elas foram oferecidas, usou o vírus como arma biológica contra sua própria população e dezenas de milhares de brasileiros morreram por suas atitudes negligentes e pela falta de políticas públicas que interrompessem a contaminação. A maior parte dos mortos é de pessoas negras.
São pessoas negras em sua maioria que hoje passam fome (33 milhões de famintos), são pessoas negras em sua maioria que vivem em insegurança alimentar (125 milhões), são pessoas negras em sua maioria que são encarceradas sem julgamento (800 mil pessoas presas) e são pessoas negras em sua maioria que são assassinadas quando a polícia entra atirando nas favelas e periferias.
Bolsonaro sempre deixou cristalinamente claro o que pensa a respeito das ações policiais nas favelas (é um grande aficionado) e o que pensa de pessoas presas (por ele a polícia deveria ter matado todo mundo no Carandiru).
Jair Bolsonaro é aquele que comparou negro a gado e que disse a Preta Gil, quando ela quis saber o que ele acharia se alguém de sua família casasse com uma pessoa negra, que “não discutiria promiscuidades”.
O vídeo de Neymar, mesmo sem declarar seu voto, é um soco no estômago da decência, do caráter, da humanidade e da dignidade. Pouco tempo depois da postagem, apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro, incluindo seus filhos, já estavam nas redes se deliciando com o apoio, ainda que informal.
Ontem mesmo, na partida contra a Tunísia, nossos jogadores foram vítimas de racismo no estádio. No dia seguinte, Neymar manda ao presidente mais destruidor da história do Brasil, um simpático vídeo que, a três dias da eleição, tem sim contexto eleitoreiro.
Alegar que não tem é discurso para vegetais e minerais. Que enorme tragédia do país que tem por ídolo alguém como Neymar: gênio no campo; flagelo na política.