Canini morreu, longa vida ao Canini!

absolut-CANINIUm dos mais influentes mestres do cartum brasileiro, Renato Vinícius Canini, colaborador do Extra Classe, deixa um legado de humor, presença de espírito e camaradagem.

Pra quem não recebe o baita jornal Extra Classe (do Sinpro/RS, com circulação mensal, dirigida aos professores do ensino privado), onde o Canini publica (junto com Edgar Vasques/Fraga/ Santiago/Verissimo), aí está a matéria que registra a imensa perda pros amigos e pra cultura nacional.

Diz o livro dos Provérbios, capítulo 31, versículo 11: “Como é difícil encontrar uma boa esposa. Mais difícil do que encontrar pedras preciosas”. Uma anotação ao lado do trecho bíblico com a caligrafia de Renato Canini: “Encontrei!!”. Pois foi assim que, poucas semanas depois do seu falecimento, repentinamente causado por problemas cardíacos, em 30 de outubro passado, Lourdes Maria Martins Canini, 78 anos, encontrou a interferência bem-humorada do marido nas escrituras sagradas. Livro que, segundo ela, era diariamente consultado e que permanecia desde a sua morte na gaveta da sua mesa de trabalho, onde ela não costumava mexer. No dia 25 de novembro eles completariam 18 anos de casados.

Ela também descobriu, na mesma Bíblia, uma lista de nomes de parentes e amigos, além de todos os membros da Grafar (associação aberta a cartunistas, chargistas, caricaturistas, ilustradores e quadrinistas gaúchos). Tratava-se de uma relação de pessoas a quem dedicava orações de forma sistemática. “Nunca fui tão eu como no tempo em que dividi com ele. Humilde, generoso e essencialmente bom”, diz Lourdes, emocionada e com a voz embargada, lembrando que certa vez mandou fazer um pequeno troféu, com a inscrição: “marido ideal”. Mimo que Renato guardava junto com os prêmios e homenagens nacionais e internacionais que conquistou por intermédio do desenho e do humor. O casal vivia atualmente em Pelotas e mantinha um apartamento em Porto Alegre. Não tiveram filhos; além da esposa, Canini deixou três irmãs: Eunice, Damaris e Consuelo Canini.

Para José Fraga, um dos amigos mais próximos nas últimas décadas, trata-se de um episódio emblemático e revelador, que nos explica um pouco mais do homem que existia dentro do artista, esposo, irmão e amigo, surpreendente até na ausência. Como se sabe, além do humor, Canini levava a religiosidade muito a sério, era metodista praticante, lia a Bíblia sempre e orava tanto quanto dedicava-se ao desenho.

Renato Canini é considerado um dos grandes mestres brasileiros do traço. Natural de Paraí, no interior do RS, participou das revistas Recreio, Pasquim, Pancada, Crás, além de ser um dos grandes artistas a ter trabalhado na linha Disney, conhecido especialmente por sua passagem marcante com o personagem Zé Carioca, com o qual atuou como desenhista e roteirista, sendo um dos principais responsáveis pelo abrasileiramento do personagem. Também é criador do Dr. Fraud (personagem republicado no Extra Classe) e Zé Candango, este último quando participou de uma cooperativa, a Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre (Cepta), criada para publicar histórias em quadrinhos brasileiras, no início da década de 1960.

Ele também criou Kactus Kid, inspirado no ator Kirk Douglas, uma sátira aos quadrinhos de faroeste, transformando Zeca Funesto, dono da funerária da cidade em que não morria ninguém em herói improvável, ao colocar uma peruca, fazer um furo no queixo transformando-se em Kactus Kid, publicado na extinta revista Crás, da Editora Abril, que abrigava exclusivamente autores nacionais na segunda metade dos anos 1970. O personagem deu forma ao Troféu HQMix do ano de 2007.

Mais recentemente sua principal criação e grande paixão foi o personagem Tibica, publicado no livro Tibica – O Defensor da Ecologia (Editora Formato), que continuará sendo republicado no Extra Classe. Entre alguns dos prêmios que recebeu estão o HQ Mix e o Angelo Agostini. Canini também foi eleito o primeiro Mestre Disney brasileiro, além de ter sido homenageado pelo FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, em 2009.

No ano passado, Canini lançou o livro Pago pra ver, coletânea de cartuns, desenhos e ilustrações tendo como tema o pampa e o gaúcho.

Em 5 de dezembro circula uma revista Zé Carioca em que a Editora Abril faz uma homenagem a Canini, com a história A fuga muito doida do Zé Carioca, com argumento do editor Paulo Maffia, roteiro e desenhos de Fernando Ventura e arte-final por José Wilson Magalhães.

Criada originalmente em 2005, para compor o volume 5 da série Mestres Disney – estrelada por Canini –, a história permanece inédita (na época da publicação, a aventura foi substituída por outra escrita e desenhada pelo próprio homenageado). Emulando o inconfundível estilo gráfico de Canini, a HQ estava guardada nos arquivos digitais de Fernando Ventura e foi resgatada para se transformar nessa homenagem especial.

Depoimentos

“Era de uma doçura cativante, o Canini. Desde o momento que o conheci, ele foi assim: leve, receptivo, como são as crianças que mal se olham e já se tornam amigos pra vida. Acho que ele desenhou, pensou, repensou, mergulhou tão fundo no imaginário infantil, que descobriu que o mais sábio era ser sempre guri”. (Rodrigo Rosa)

“No começo dos anos 1970, os desenhos animados na TV eram tudo preto e branco. Quando conheci a Recreio, com aquela explosão de cores e, principalmente, um desenhista que fazia umas galinhas quadradas, foi paixão eterna à primeira vista. Adorava o Zé Carioca verde e amarelo, depois veio o Tibica, Kaktus Kid. Conheci o Canini pessoalmente em 1983 e somos amigos até hoje e continuaremos, mesmo depois dele ter partido. Quando eu quero conversar com o Canini, é só pegar um dos livros dele e abrir…” (Lancast)

“Felizmente já foi dito por todos que o Renato Vinícius Canini era um enorme artista dentro de uma pessoa maravilhosa. Felizes fomos nós os amigos chegados, que usufruímos dos dois. Seguindo a mesma evolução dos grandes mestres da pintura, chegou à sua maturidade artística se expressando por uma extrema síntese gráfica do desenho. Não foi diferente com Joan Miró e Pablo Picasso, que no fim da vida tentavam atingir a depuração, a espontaneidade e a doçura do desenho das crianças”. (Santiago)

“O Canini é sempre citado como aquele que afrontou o imperialismo cultural e abrasileirou o Zé Carioca, mas na verdade o que é mais interessante é que ele fez isso e tudo o mais que ele fez na área – brincou com Freud e o western, ensinou ecologia, explorou o Pampa e seus personagens – com a doçura que lhe era característica”. (Fabio Zimbres)

“Sempre achei que o Canini tinha algo de etéreo, de anjo desgarrado. É um consolo pensar que ele agora está em casa”. (Luis Fernando Verissimo)

Renato Canini foi um desenhista impressionante. Literalmente. Avesso a qualquer badalação, apenas com a originalidade de seu desenho, sempre sintético, sempre inventivo e surpreendente, impressionou gerações de cartunistas, ilustradores e quadrinistas. No Brasil e no exterior. E vai seguir, mediante a extensa obra que deixa, imprimindo sua marca visual na sensibilidade de novas levas de autores. Sendo uma das três ou quatro linhas mestras do cartum brasileiro moderno (com Millor, Ziraldo e Nássara), nos últimos anos superou os limites da arte aplicada, ampliando o alcance do desenho como arte pura”. (Edgar Vasques)

“Eu tive contato com os desenhos do Canini, quando era criança, através da revista infantil Bem-te-vi, editada pela imprensa metodista, de São Paulo. Certa vez, quando eu tinha 5 anos, minha mãe mandou um desenho meu de Santa Maria para lá, ele selecionou e a revista publicou. Os primeiros personagens que eu conheci foram o vagalume Cafuru e a abelha Zabelinha (ali por 1964). Só fui conhecer o Canini pessoalmente em 1975, através do Juska, no tempo em que desenhava o Zé Carioca para a Abril. Mas nessa época ele também fazia cartuns maravilhosos e engraçadíssimos. Além de ser um gênio do humor e da síntese, o Canini era um cara de uma grandeza humana comovente”. (Augusto Bier)

“O Canini era um gozador nato: do mundo, dos outros, de si mesmo. E era tudo isso sem deixar de ser religioso. E era religioso sem ser puritano – a pior forma da religião. E era um cartunista com compaixão pelo humano – a melhor forma de humor. E além disso era sempre civilizado – a mais perfeita forma de conviver. O Canini aperfeiçoou de tal forma a gozação e o convívio que nos pastoreou sem a gente notar – só notamos a sua pastorinha gozada pela ovelha negra. E quando ele se foi, foi em plena forma: no auge da sua arte. Nunca mais outro Canini – a forma quebrou”. (Fraga)

Extra Classe

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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