Canto mal e cada vez mais alto

Como é revigorante mandar para o inferno a sociedade da produtividade e do resultado

Estou com 48 anos. Como todo mundo, até agora vinha investindo meu tempo no que sei fazer de melhor. No caso, escrever, falar sobre literatura e dançar. Esses dias me ocorreu que era hora de inverter o percurso. Se gastei metade da minha vida fazendo o que faço de melhor, por que não gastar a segunda metade fazendo o que faço de pior?

Não estou dizendo que vou largar o que faço bem. Até porque essas coisas são o meu ganha-pão e meu caminho para a sanidade. Apenas senti que chegou a hora de investir mais tempo nos meus destalentos.

A ideia me ocorreu enquanto eu dirigia por uma avenida, na companhia de colegas de trabalho. De repente, começou a tocar uma música que adoro. Tive vontade de cantar o refrão, mas me segurei. Canto mal demais. Sou desafinada, perco a voz de repente, não consigo alcançar um mísero agudo. Na única vez que tentei cantar em público, em um karaokê, acharam que eu estava bêbada de tanto que miava sem destino pela melodia (eu só tinha bebido água). Lá pelo terceiro verso, meus amigos acudiram ao palco, dando uma força para as minhas cordas vocais. Certa da minha limitação, voltei a cantar só no chuveiro, calando-me quando aparecia uma lagartixa.

No dia em que estava no carro, no entanto, minha vontade de cantar foi mais forte que o meu constrangimento. Quando chegou o outro refrão, soltei a voz. Ali, de olhos fechados enquanto o farol não abria, experimentei uma sensação efêmera e magnífica. Aquela canção dos anos noventa me conectava com outras Giovanas. A que fui naquela época. A que fui anos depois. A que era havia pouco. No peito expandido pelo ar, senti todas ao mesmo tempo. E senti o que elas sentiam quando ouviam aquela música. Quando abri os olhos e segui dirigindo, com meu coração populado e populoso, decidi que nunca mais me privaria de cantar, não importando quem estivesse comigo.

O mesmo se deu com minha desvocação culinária. Embora venha de uma família do ramo de restaurantes, cozinho mal, e não por falta de tentativas. Quantas vezes comprei livros de receitas, pedi conselhos para a minha exímia mãe, mas não há tutorial de Rita Lobo que resolva, porque para cozinhar também é preciso que se adicione o ingrediente nato do talento, ainda que em sua dose mínima.

Apesar da insipidez dos meus pratos, tenho prazer em fazê-los. Ao final de um dia de trabalho, gosto de aterrissar sobre a tábua de madeira, com uma faca na mão, trocando a natureza fugidia dos pensamentos pela solidez da comida. Gosto ainda mais de fazer isso com uma taça de vinho aos domingos. Depois de anos pedindo delivery ou que alguém cozinhasse toda vez que meus amigos iam em casa, resolvi meter a mão na panela. Se meus amigos gostam mesmo de mim, que aguentem meus maus pratos.

Por fim, me inscrevi em uma oficina de cerâmica raku, inspirada pela certeza de que não tenho nenhuma habilidade manual. Abri o jogo com meus colegas já no começo. Graças a isso, pude rir de mim mesma em excelente companhia ao pintar um vaso com listras grosseiras. E pude me surpreender —quando nada se espera, ganha-se muito— ao ver o mesmo vaso sair do forno, retrabalhado pela lambida caridosa do fogo, com um aspecto peculiar. Quiçá até interessante.

É para o vaso que olho neste exato instante, pensando como é revigorante mandar para o inferno a sociedade da produtividade e do resultado, mesmo que apenas de vez em quando. Podia ter descoberto isso antes, mas pelo menos descobri agora. Que satisfação sentir que ainda tenho toda uma meia vida a desbrilhar pela frente.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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