Assim como a visão, com o passar do tempo, a memória da gente também embaça, fica turva e se diverte com isso.
A sensação é de que misturam-se lembranças a sentimentos, com projeções e com reinvenções da realidade. Numa tentativa malandra de adaptar os momentos vividos às nossas vontades.
Saber disso não carrega em si o peso dos arrependimentos, não. Tem mais a ver com aquele desapego que vamos adquirindo às convenções e aprisionamentos erguidos e sustentados ao longo da vida. Tem a ver com a liberdade criativa da maturidade e com aquela travessura de, finalmente, poder dar asas às mais simples vontades, sem prestar contas a ninguém, pois o mundo já nos permite afrouxar os nós. Até se diverte com isso. A exemplo dos avós que estragam os netos como não se permitiram fazer na rígida criação dos filhos. Passaram o bastão a estes.
Mas nesse passeio pelas memórias da gente, volta e meia nos deparamos intrigados com situações que não sabemos ao certo se são integralmente lembranças ou se há muitas e mais reinvenções nisso… Por termos guardado, junto com os acontecimentos – sem registrá-los com o rigor de quem valoriza materializar tudo -, desejos e abstrações.
Queria ter dito isto, feito aquilo, assim e assado… Cabe nessa bagagem também aquela melhor resposta que a gente não deu. É justamente a que o subconsciente armazena e consagra. E, assim, o mundo narrado vira palco de um eterno reviver.
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que quero me suprime
Do que por não saber, ‘inda não quis.
(Jura Secreta – Sueli Costa e Abel Silva)
Por isso, a história oral precisa ser muito bem checada. Uma vez contada, traz toda uma carga de sentimentos que permearam aquelas lembranças. Falou em sentimentos e esse mundo de significados de concretudes já liga seu alerta, relativiza, questiona, duvida.
Mas a sinceridade e veracidade das memórias não residem no que aconteceu, mas também no que se sentiu a respeito. Essa parcialidade é que segue em frente e vai inspirar poemas, canções, prosas literárias e as contações de histórias. Suassuna sabia disso e nos presenteou com o bordão do Chicó: “só sei que foi assim!”. Não teria o brilho e o encanto humano que carrega se fosse diferente.
Não vou levar adiante nenhuma informação realista e tacitamente afirmativa da cena que memorizei, até porque me faltam essas referências e a vontade de vasculhá-las. Só sei que tem uma lua imensa em cima de você, que ilumina sua cabeça. Só você não sabe, não percebe e, por isso mesmo, sequer sente a sua presença.