Agosto de 1976. Em Campinas, SP, Rubem Alves é surpreendido por um bilhete escrito numa folha de bloco rasgada ao meio. Fora-lhe enviado dos Estados Unidos: “Caro Rubem Alves: seus pensamentos no livro ‘Tomorrow’s Child’ têm tido uma profunda influência sobre a minha vida. A sua capacidade de sintetizar… a clareza com que você se exprime são dons muito bonitos. Por isso sou-lhe muito agradecido. Afetuosamente, Ladon Sheats.”
Nada mais sobre o signatário. Algum tempo depois, Rubem ficou sabendo que o bilhete fora escrito de uma prisão, em Alexandria, onde Ladon cumpria pena por haver participado de uma manifestação contra as armas nucleares diante do Pentágono.
Rubem nunca imaginou que seu livro fosse parar numa prisão e que um prisioneiro levara a sério o que ele escrevera, talvez mais do que ele próprio.
Ladon Sheats era um cidadão norte-americano comum. Fez parte do SAC – Strategic Air Command, integrado à força aér dos EUA que controlava os bombardeiros e mísseis atômicos a serem lançados contra a União Soviética, se necessário. Fora da SAC, chegara a ser vice-presidente de marketing da IBM.
De repente, tomou consciência daquela monstruosidade. Demitiu-se da IBM, vendeu o que possuía e juntou-se a um grupo de pessoas que invadia pacificamente as instalações nucleares americanas, sabendo que isso as levaria à prisão. Aliás, invadiam para serem presas. Isso tornava público o seu protesto.
Rubem passou, então, a ter com Ladon Sheats uma longa correspondência.
Em uma das cartas, Ladon narrou que ele e sua turma haviam acabado de cumprir um mês de prisão, depois de uma invasão de um lugar onde eram armazenados silos atômicos, próximo da fronteira com o Canadá. Saídos da prisão, resolveram fazer tudo de novo. E Ladon narrou os preparativos:
“Durante o fim de semana, nos entregamos a uma farra – salada de aspargos e espinafres frescos, pizzas, cervejas etc. e longas caminhadas na frescura da primavera. Estávamos tão agradecidos por poder voltar ao local dos mísseis… localizado tão próximo a uma reserva de vida animal, onde abundavam garças azuis, gansos canadenses, veados e miríades de criaturas da terra e do céu. Ficamos, então, de pé sobre as tampas de concreto que cobriam os mísseis… cantando, lendo as Sagradas Escrituras e textos do seu livro ‘Creio na Ressureição do Corpo’, que um casal havia descoberto durante seu último período de prisão. Os seus pensamentos alimentaram nossos espíritos, Rubem. Você estava lá conosco. Pensando na sua imagem do corpo como uma pipa e cantando um hino – foi assim que ‘pulamos o muro’, em comunhão com os ‘quero-quero’ que voavam livres, entrando e saindo do lugar proibido onde se encontravam os mísseis. Os seus pios soaram como se fossem ecos à nostalgia que havia em nossos corações.”
Em outra de suas cartas, Ladon contou a Rubem que, naqueles dias, marcharam para os silos atômicos cantando o hino “The Lord of the Dance”. Disse que era o hino preferido dele, um hino que nasceu de um pequeno grupo religioso chamado “Shakers”, que existiu no século dezoito na Nova Inglaterra. E o curioso é que os cultos desse grupo eram orgias de dança!
Em maio de 2001, Rubem recebeu uma carta escrita por uma mulher: “Estou escrevendo a pedido de Ladon Sheats, que pede que nos lembremos dele em pensamentos e orações. Ladon foi hospitalizado para uma cirurgia de desobstrução da bile. No meio da operação, os médicos descobriram câncer de pâncreas, tumor inoperável, e os médicos lhe deram de três a nove meses de vida (…). Ladon decidiu focar a sua vida intensamente em cada dia, ao invés de tentar radioterapia, quimioterapia ou terapias alternativas…”
Rubem escreveu a Ladon:
“Meu querido, muito querido Landon: Tantos anos se passaram… E perdi contato com você. Mas você sempre esteve no meu coração e eu o imaginava caminhando sozinho pelas montanhas, em busca de silêncio, de comunhão com Deus e com a natureza. Contei muitas vezes a estória da nossa estranha amizade – porque é estranho pensar que duas pessoas que nunca se encontraram pudessem ser tão amigas. E agora me contam que você está se preparando para o momento de ficar encantado…
“Foi-me dito que você tomou a decisão de viver o resto na vida de forma mais livre e mais corajosa. A vida é preciosa e deve ser bebida até a última gota. Quando chegar a minha vez, espero ter a sua liberdade e a sua coragem. A vida é bonita e é preciso que a morte seja bonita também. É trágico que nos dias de hoje, como resultado da parafernália médica, a morte tenha se tornado feia, solitária e amedrontadora. Um dos nossos poetas chamou a morte de ‘a minha mais nova namorada’… Talvez ele estivesse pensando na morte como a Pietà – a morte como uma mulher que recebe o nosso corpo no seu colo.”
“Tenho um lugar nas montanhas. (…) Lá há um jardim encantado onde planto árvores para meus amigos que morrem. Já plantei a minha própria árvore, pois nunca se sabe ao certo quando a nossa hora vai chegar. (…) Todas as árvores são de florestas tropicais, com uma exceção: um pinheiro canadense, nome científico ‘liquidamur’. (…) Uma amiga me deu uma muda e eu a plantei numa encosta de onde se vê o horizonte. Acho que ela está gostando do clima. Mas ainda não lhe dei nenhuma nome. Será que você concordará se eu lhe der o nome de Ladon Sheats? Assim, quando alguém me perguntar pelas razões daquele nome, eu contarei a sua estória… E as pessoas saberão que há, neste mundo, pessoas bonitas que tornam a vida digna de ser vivida…”.
Ladon Sheats faleceu em 7 de agosto de 2002, aos 68 anos; Rubem, em 19 de julho de 2014, aos 80 anos.
P.S. – Iniciar o ano com Rubem Alves é sempre alvissareiro. Oxalá 2018 nos poupe das desgraças ocorridas, vividas ou descobertas em 2017! Amém.