Conheci Rubem com enorme atraso. Tardiamente, lamento. Faz uns dez anos. Foi numa noite, através da televisão, no “Roda Viva”, da Cultura de São Paulo. Lá estava o Rubem no centro da roda, alegre, simpático e faceiro, falando sobre os temas que tanto adorava: educação, crianças, poesia, literatura e vida. Foi amor à primeira vista. Depois, vi-o no “Aqui Entre Nós”, da nossa TV Paraná Educativa, desfilando a simplicidade dos sábios, fazendo amigos e conquistando admiradores. Mas aí eu já me tornara seu leitor e admirador. Hoje, posso vangloriar-me de haver lido praticamente toda a sua extensa obra – mais de uma centena de títulos. A conselho do próprio autor, li-o e leio-o devagar, sem nenhuma pressa, entremeando a leitura com pensamentos, para não atropelar o prazer e afetar o sabor, na linha de ensinamento de Schopenhauer – tão citado por Rubem –, segundo o qual a leitura só é boa quando bovina, isto é, quando leva à ruminação. E a leitura de Rubem Alves faz bem à alma, traz felicidade e sabedoria, rejuvenesce o ser humano.
Rubem nasceu em Boa Esperança, MG – “aquela cuja serra Lamartine Babo imortalizou numa canção” –, em setembro de 1933. Estudou música: quis ser pianista, até que comparou o seu talento com o do conterrâneo Nelson Freire. Em seguida, pensou em ser médico, por amor a Albert Schweitzer. Andou pelos caminhos dos deuses: estudou teologia no Seminário Presbiteriano de Campinas, SP; fez mestrado no Union Theological Seminary, de Nova York; doutorou-se em filosofia pelo Princeton Theological Seminary; tornou-se psicanalista pela Associação Brasileira de Psicanálise; e foi pastor protestante. Depois, confessou ter ficado mais modesto e passou a andar nos caminhos dos heróis: militou na política, esteve na lista dos procurados pelo golpe militar de 1964 e foi professor livre-docente da Unicamp. Quando os seus “deuses e heróis morreram”, como assinalava, seguiu o caminho dos poetas, dos pensadores e das crianças: virou escritor e cronista. Mas foi, sobretudo, a vida toda, um menino e um avô que adorava brincar e compartilhar pensamentos: uma extraordinária figura humana, que amava a beleza, a natureza, as netas, os jardins e os pássaros, a sabedoria das crianças, o vento fresco da tarde, os ipês floridos, o outono, os animais, os campos e os cerrados, o mar e as montanhas, o orvalho sobre a teia de aranha e os pores-do-sol.
Ah, os crepúsculos!… “Na cidade onde eu vivi, no interior, ao crepúsculo se tocava a Ave Maria, e era como se toda a Natureza parasse e rezasse. Eu gostava de ficar olhando para as árvores, havia uma imobilidade absoluta no ar. Nem um único tremor perturbava a tranquilidade pensativa das folhas. E as nuvens ao poente se coloriam de verde-claro, passando pelos amarelos, laranjas e vermelhos, até o roxo, que se preparava para desaparecer na escuridão”.
As palavras de Rubem Alves eram e continuarão sendo lições de vida. Suas crônicas emocionam e fazem-nos pensar. Às vezes é irônico e bem-humorado; outras vezes, lírico e romântico; e outras mais, crítico e até mordaz. Mas sempre inteligente, humano e sincero. Ele era capaz de, com toda a simplicidade, construir verdades eternas, de profunda significação. Uma delas: “Minas não tem mar. Mas Minas tem céu. E o céu é o mar de Minas”.
Houve apressadinhos desinformados que me acusaram de excesso de admiração. Em vez de ofender-me, a pichação valeu-me uma ponta de vaidade, pois só não admirava, respeitava e queria bem Rubem Alves quem não tivera a glória de desfrutar do pensamento dele e das suas aulas de viver.
Ele nos deixou fisicamente na manhã de 12 deste julho, mas suas lições serão eternas. Em uma de suas últimas crônicas, quando a doença ainda não havia dominado o seu corpo e a sua mente, o grande Rubem deixou consignadas as suas derradeiras vontades para o momento final neste mundo:
“Vou ser cremado por não gostar de lugares fechados. As cinzas podem ser soltas ao vento ou colocadas como adubo na raiz de uma árvore. Assim posso virar nuvem ou flor. Um jantar para os amigos com sopa, vinho e Jack Daniels. Será que no outro mundo há Jack Daniels? Ofício religioso, Deus me livre. Não quero que se digam palavras dizendo que fui para o céu. O céu me dá calafrios. Mas gostaria que meus amigos ouvissem algumas das músicas que amo. São muitas. Separei algumas. Gluck: Melodia, da ópera Orfeu e Eurídice, Nelson Freire ao piano. Está no seu DVD. De Bach: o Minueto, do Livro de Ana Madalena. É a coisa mais singela… O CD Bach, do grupo O Corpo, com o Uakti. A primeira suíte para violoncelo, sobre a qual escrevi o livro O Barbazul. O CD Lambarena, em homenagem a Albert Schweitzer, com ritmos africanos. Bach ficaria assombrado! A ária para a quarta corda. Carl Orff, a canção “In trutina”, da Carmina Burana. De Mozart, a Sonata em lá maior KV. 331 (Marcha turca); Uma pequena serenata (Eine kleine Nacht Music). Eu fazia meu filho Sérgio dormir ouvindo essa delicadeza… De Liszt: a Consolação no 3, de uma pungência infinita. De Dvorjak, Sinfonia do Novo Mundo, segundo movimento. De Ravel, o segundo movimento do Concerto para piano e orquestra em sol maior. E de Astor Piazzola, Oblivion, Arthur Moreira Lima ao piano.”
Algum tempo depois, quando já bastante doente, Rubem escreveu uma mensagem de dez folhas para os filhos. Ela foi confiada ao amigo de quarenta anos, o antropólogo Carlos Brandão, e somente lida no dia de seu funeral. Nela ele se dizia grato pela vida e acrescentava: “Não terei últimas palavras a dizer. As que tinha para dizer, disse durante a minha vida. Fui muito amado. Tive muitos amigos. Plantei árvores, fiz jardins. Construí fontes, escrevi livros. Tive filhos, viajei, experimentei a beleza, lutei pelos meus sonhos. Que mais pode um homem desejar? Procurei fazer aquilo que meu coração pedia.” Depois, reafirmava o desejo de ser cremado e suas cinzas despejadas aos pés de um ipê amarelo – provavelmente na Fazenda Santa Elisa, que ele tanto amava, na cidade paulista de Campinas –, enquanto seriam lidos poemas de seus poetas preferidos, como Cecília Meireles e Fernando Pessoa.
Para eventual lápide – que, em virtude da cremação do corpo, não haverá –, Rubem lembrou de Robert Frost e concluiu que era a frase que ele escolheria para constar sobre sua sepultura: “Ele teve um caso de amor com a vida”.
Do blog do Zé Beto