Chato de galochas

O chato de galochas pode ter nascido do proverbial humor do carioca, que inventa tantas expressões. O escritor Artur da Távola assegura que a metáfora nasceu de que a galocha possibilitava ao chato chegar de mansinho, sem fazer barulho, impedindo a dispersão daqueles que obviamente queriam evitá-lo.

O médico cardiologista Rostand Paraíso, da Academia Pernambucana de Letras, tratando do tema, no Jornal do Commercio (julho de 2002, dia 4), deu pistas do primeiro chato de galochas do Brasil. Diz ele: ”a expressão máxima dos chatos em Pernambuco parece ter sido o Bodião-de-Escama, tipo popular que vivia em torno das mesas do Café Lafayette, procurando fazer jus a alguma bicada, enchendo a todos com suas extravagâncias e inconveniências. Seu nome ultrapassou as fronteiras do Estado e, ainda hoje, figura no Aurélio como um tipo popularíssimo das ruas do Recife da 2ª metade do século 19”.

Mas quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O chato ou a galocha?

A propósito da questão emblemática, ”galinha” e ”ovo” estão presentes em minuciosa legislação baixada pelo rei português Dom Afonso III, em 1269: ”e toda regateira que houver cousa de seu, venda em sua casa manteiga, azeite, mel, vinagre, açafrão, ovos..”. Vejam só: regatear, como sinônimo de pechinchar, remonta ao século 13, vindo do latim vulgar recaptare, funcionando o prefixo ”re” como repetição de ”captare”, pegar, isto é, pegar de novo alguma coisa, comprá-la, vendê-la.

A galocha, porém, precedeu o chato em alguns séculos. Como é freqüente no português, veio das lides náuticas, ainda no século 13, designando prego, mas antes estivera no pomar, pois o galho nascido de enxerto era igualmente denominado galocha. Galo como sinônimo de protuberância ou inchaço na testa ou na cabeça, causados por pancada, é vizinho etimológico. A referência é o galo, a ave propriamente dita, símbolo tão caro aos habitantes da Gália antiga, depois conhecidos como franceses.

Antes de chegar ao português, galocha esteve no provençal antigo. Inicialmente calçado rudimentar, de sola grossa, de madeira ou de couro, depois passou a designar o revestimento de borracha que servia de proteção aos sapatos em dias de chuva. Entrou em desuso há algumas décadas.

Chato veio do latim plattus, do grego plátys, largo, plano, e por metáfora veio a designar a pessoa inconveniente porque chato é o nome popular do piolho-ladro e este torna-se muito inconveniente e inoportuno pelas coceiras que provoca. É inseto que mais parece um piolho. Seu nome em latim é Phthirius púbis. Vive na região pubiana e eventualmente nas sobrancelhas, axilas e outras partes do corpo. Mede pouco mais de um milímetro e costuma pôr ovos, em forma de lêndeas, na base dos pêlos pubianos. Sua expectativa de vida é de apenas três semanas, mas incuba os ovos durante sete dias. Aos 15 dias de idade, as fêmeas estão aptas à reprodução. A camisa-de-vênus, já popularizada como camisinha, não serve de defesa.

Como se vê, o piolho ”chato” e o homem ”chato” tornaram-se inconvenientes por motivos bem diversos, mas não ocorreu ao inseto a astúcia da pessoa, consistindo em chegar de galocha para sua aproximação não ser percebida. No caso, a maior astúcia foi a do carioca, ao produzir a expressão.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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