Cinema de autor

Num texto publicado por “Filmmaker, the Magazine of Independent Film”, um dos meus diretores preferidos, Terry Gilliam, dá seus conselhos (um tanto heterodoxos, felizmente) sobre a arte de fazer cinema. 

Comentarei alguns, principalmente aqueles de que discordo. (Conselho óbvio entra por um ouvido e sai pelo outro, não é mesmo? “Tenha boas ideias… Transmita segurança diante da equipe… Não estoure o orçamento…”).  Gilliam é um dos autores que me levam ao cinema só para curtir a desbragada e irreprimível criatividade visual dos filmes que faz.  Tudo nele é exagerado, barroco, delirante, cheio de coisas que dá vontade de ficar o tempo inteiro voltando a imagem e esquecendo a história só para curtir aquele quarteirão de casas impossíveis, ou aquele figurino cheio de deliciosos anacronismos, ou aquele monstro feito de papelão e pixels.  Quantos diretores há, no cinema comercial de hoje, com a mesma verve visual e a mesma sem-cerimônia?  Tim Burton, Jean-Pierre Jeunet e mais alguns poucos.

Diz Gilliam: “Cinema de autor já era, o que vale agora é cinema de filtro. Ser um autor de filmes é o que a gente sonhava nos anos 50 e 60, quando a ideia do cineasta autor chegou neste planeta.  E as pessoas continuaram usando esse termo, e o usam com meus filmes porque acham que eles são muito pessoais, então me dão todo o crédito e dizem que sou um autor. E eu digo que não; a realidade é que eu sou um filtro.  Sei o que estou tentando fazer, mas tenho à minha volta uma porção de pessoas que são meus amigos e não acatam ordens e não me dão ouvidos, mas têm idéias próprias.  E quando eles vêm com uma boa idéia, se é uma que se encaixa no que estou tentando fazer, eu a uso.  Assim, o produto final é uma colaboração de uma porção de pessoas, e eu sou o filtro que decide o que entra e o que não entra no filme”.

Isso que Gilliam descreve, contrapondo ao cinema de autor, é justamente – no meu modo de ver – o cinema de autor.  Um autor não é um ditador que dá ordens misteriosas, bate o chicote, e manda refazer a cena cem vezes. (Há autores assim – Kubrick, p.ex. – mas essa é uma distorção do conceito.)  Tanto em movimentos fortemente autorais como a Nouvelle Vague e o Cinema Novo quanto nos momentos mais harmoniosos dos grandes estúdios de Hollywood (quando diretores, produtores e roteiristas concordavam em fazer o mesmo filme) o diretor não é um distribuidor de ideias de cima para baixo, mas um arregimentador de ideias em torno, um catalisador da criatividade alheia. 

(Mas Terry Gilliam conhece o mundo do cinema melhor do que eu, e pode até ser que o Autor Que Dá Chilique seja estatisticamente mais frequente.)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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