Foto Arquivo Pessoal
Já não é fácil ser mulher, mas, desde segunda, a minha vida se transformou num inferno. Fui violentada por um motorista que havia sido chamado por um aplicativo. Estava numa festa, feliz da vida com as minhas amigas e meus amigos, e percebemos que eu já tinha passado do ponto (sim, isso significa que bebi demais) e que era hora de ir. Ele se aproveitou do meu estado vulnerável. Não darei detalhes pois não estou no programa da Sônia Abrão, e isso é o que menos importa.
Ponto um: estava vulnerável. Ficamos, quando bebemos, e temos todo o direito de beber, inclusive porque o álcool é vendido em qualquer lugar, posto que é uma substância lícita e em garrafa alguma jamais vi nenhum rótulo de que apenas homens podem consumir.
Mas infelizmente apenas mulheres são julgadas por isso. O homem encher a cara no churrasco, no jogo de futebol, e voltar pra casa trançando as pernas é a coisa mais normal da face da terra, apenas um homem chegando de porre lá da boemia. Se uma mulher bebe, nossa, que vagabunda, devia estar pedindo, com que roupa ela estava? Mulher de respeito não faz isso. Pois eu estava com a roupa que eu quis usar aquele dia. Poderia estar de burka. Poderia estar fantasiada de Mulher-Maravilha, se quisesse. Meu corpo, entorpecido ou não, merece respeito. Não tenho e não terei a conduta ilibada e aura pura que esperam de uma mulher “de respeito”, que é como gostam de chamar as mulheres que passam no crivo dos conservadores. É bela, recatada e do lar que chama, né? Não sou isso. Não serei e tenho direito de viver como bem entender. O respeito é meu por direito.
Os últimos dias me fizeram descobrir que é praticamente uma invenção das nossas cabeças achar que as pessoas evoluíram e acreditam que alguém pode levar sua vida livremente sem ser assediada, abusada, violada. Cheguei em casa arrasada, minha amiga cuidou de mim, me amparou chorando a noite inteira, e eu ainda fui questionada do porquê não ter ido “direto para a polícia”. Tudo que uma mulher quer depois de ter seu corpo violado é ir numa delegacia, não é mesmo?
Ter que aguentar idiota dizendo que uma vítima quer “aparecer” contando uma história de violência é algo que foge da minha compreensão. Teve até quem dissesse que contei minha experiência porque lanço livro com minha querida Titi Muller ainda neste ano e quero chamar atenção. Mas é lógico! Tudo o que quero é que apontem para meu livro e digam “ei, não é aquela garota que foi violentada? Vou comprar?”. E outra: caso vocês não saibam, a editora tem departamento de marketing e dos fortes, eu não precisaria criar um factoide e mentir, como os misóginos de plantão têm me acusado de ter feito. E o mais incrível: sequer fiz denúncia formal e não há “falsa acusação de crime”, como os Advogados da Universidade das Redes Sociais decidiram, pois sem denúncia formal não há crime ou investigação. E, se você não seguir a cartilha decidida por eles, é invenção. Senão é “fanfic”.
Fanfic legal vai ser pegar todas essas agressões que tenho recebido e fazer uma compilação pra mostrar o que passa uma mulher que denuncia violência. Duvidam da veracidade, questionam meu comportamento, minha roupa, meu estado. Perguntam por que não quero fazer boletim de ocorrência, sendo que não passei por uma cena do filme Irreversível e não tenho inúmeras marcas e DNA no meu corpo. Como é que eu vou provar? Pode até que aconteça o que houve com a Joanna Maranhão e que EU vire a criminosa por não conseguir provar um crime que não deixou vestígios ou teve testemunhas. É essa a maior crueldade do crime sexual; se não temos como provar, estamos lascadas.
Estupro, desde 2009, já não é apenas penetração de pênis em um corpo; a legislação brasileira considera estupro qualquer ato sexual – como toques indesejados em partes íntimas – ocorridos por meio de violência ou ameaça grave, mesmo que não haja penetração. Guardem essa informação, mulheres. Você pode ter sido estuprada e não sabe.
Outros surtam e dizem que estou desencorajando mulheres a fazerem denúncias, logo eu, uma militante que tantas vezes acompanhei mulheres vulneráveis na delegacia, que passei por constrangimentos junto com elas, que apoio totalmente a ampliação de leis de proteção a mulheres e inclusive fiz um trabalho junto ao Instituto Maria da Penha no começo deste mês. A lei ainda tem muito o que melhorar, os profissionais precisam ser preparados para lidar com mulheres em situação de violência e o sistema todo precisa ser revisto. O sistema, como está, não funciona; basta ver o número de mulheres assassinadas mesmo tendo vários boletins de ocorrência e medidas protetivas. O que eu faço é uma crítica. Jamais disse que as Delegacias da Mulher ou as denúncias não deveriam existir. Falei do meu caso. Do meu.
Quando vi que a narrativa estava virando sensacionalismo puro, além de violência destilada contra mim, eu e minhas amigas ativistas resolvemos criar a hashtag #MeuMotoristaAbusador. Basta clicar nela no Twitter, no Facebook ou na própria página que criamos e ler relatos terríveis. É só clicar lá pra ver o horror que é ser mulher e o estado permanente de medo no qual vivemos.
Quanto à sanha punitivista que quer print, foto, placa e pessoas que defendem castração química: vocês não são justiceiros, vocês são apenas sádicos. O problema não é apenas este indivíduo e o que ele fez, é toda a estrutura da sociedade que ainda trata a mulher feito um objeto, e, caso ela saia dessa posição e resolva falar e ser sujeito, passa a ser perseguida. Estupro não tem a ver com desejo, tem a ver com violência e demonstração de poder. Castração não resolve. Mais violência não resolve. Punitivismo de internet não resolve.
Agora me digam: se eu tivesse me calado e feito apenas o B.O., como tantos queriam, a discussão teria atingido esse nível nacional? As mulheres se encorajariam a falar? Não devemos nos calar. Juntas as nossas vozes são muito mais altas do que tudo de ruim que existe. E é com pressão popular que as mudanças vêm.
Clara Averbuck 30|8|2017 – Revista Donna