Cláudio Abramo

O maior jornalista cujo trabalho a minha geração teve oportunidade de conhecer foi Cláudio Abramo. Não me parece haver dúvida quanto a isso, embora afirmações assim, taxativas, possam ser contestadas. Paciência. Devoto a ele a paixão que adquiri pelo jornalismo, numa fase da minha existência em que repartia o estudo do direito (e seus tratados aborrecidos) com leituras ansiosas das notícias diárias que vinham das bancas espalhadas pelas ruas da minha cidade.

A década ainda era a de 1970, e a ‘Folha de S.Paulo’ atravessava uma revolução gráfica e editorial importante, a me encher de curiosidade. O responsável por tudo aquilo estava lá, nas páginas do jornal, em artigos certeiros, análises de temas da atualidade, da política nacional e internacional, da literatura clássica, da vida. Tão logo eu abria aquele amontoado de tinta, papel e informações, característico em forma e odor, buscava a coluna do Cláudio Abramo. Tinha a certeza de que encontraria nela a síntese da edição do dia, a avaliação dos fatos, das articulações subterrâneas de um governo sem povo, debilitado por lutas internas e sob a pressão de rebeliões operárias que desafiavam os tanques da ditadura no ABC paulista.

Cláudio Abramo foi um autodidata influenciado pelo avô anarquista e por irmãos trotskistas. Não se filiou a nenhuma corrente política, não ostentou diplomas da academia e nem se dedicou a escrever livros, talvez por não ter encontrado o seu “tempo interior”. O jornalismo ocupou a quase totalidade dos seus esforços, embalado por um acervo cultural vastíssimo. Escrevia sobre os mais variados assuntos, sempre com profundidade, consciente da sua grandeza. A humildade, aliás, não era parte do caráter de Cláudio Abramo, que não via nenhum problema em se colocar, com sobras de razão, entre os mais destacados no seu campo de atividade.

Ninguém, é provável, teve mais intimidade com a comunicação, em suas facetas múltiplas, do que Cláudio Abramo. Ele sabia de tudo. Antes de ter transformado a ‘Folha’, reformulou completamente o ‘Estado de S.Paulo’. Foi na década de 1950, quando, a convite de Júlio de Mesquita Filho, assumiu a secretaria do jornal. Ali, adotou medidas importantes, como a redução do tamanho das páginas (o termo “jornalão”, utilizado quase sempre em sentido pejorativo, era referência à impressão do ‘Estado’ em formato exageradamente grande), a transferência de sede e o controle da publicidade e do fechamento da redação, entre muitas outras. Concluiu as mudanças no início dos 1960. Em 1964, ano de ruptura institucional – o golpe militar –, ficou desempregado.

A lembrança dessa figura tão emblemática me veio agora, reforçada pela releitura de ‘A regra do jogo’, de 1988, publicação lançada menos de um ano após a morte do jornalista, em agosto de 1987. A edição que tenho comigo é a de 1997, da Companhia das Letras. No belo prefácio, assinado por Mino Carta, uma advertência: “este livro convocaria os escrúpulos de Cláudio Abramo, podem apostar”. O motivo: “Cláudio tinha muitas reservas em relação a coletâneas de artigos e crônicas publicados pela imprensa, […] e não publicaria como livro aquilo que não tivesse sido imaginado, planejado e escrito como livro”. Felizmente, para nós, mortais, essa norma proibitiva foi rompida por parentes, filhos e amigos do homenageado, responsáveis pela organização do livro.

A obra é dividida entre depoimentos gravados por Cláudio Abramo num período de pouco mais de dez anos e a reprodução de alguns dos seus artigos, sem ordem cronológica. Lição de jornalismo em pouco mais de 270 páginas, é o retrato de tempos, lugares e pessoas que não existem mais. Ao observar o cenário contemporâneo, de hegemonia de interesses antipopulares, de jornalistas submissos às ordens de seus patrões, sem nenhum rasgo de independência política – há exceções, evidentemente, mas estou a me referir ao padrão vigente no tempo estranho de agora –, penso na tristeza que tomaria conta do velho Abramo caso estivesse vivo. O triunfo do reacionarismo certamente lhe provocaria uma mistura de raiva, inconformismo e náuseas: “tenho muita dificuldade de trabalhar com gente de direita, porque a direita brasileira […] é fisiológica, e acho muito difícil conviver com pessoas desonestas, não tenho muito jogo de cintura para isso”, dizia. E mais: “essa burguesia nacional execrável desenvolveu toda uma cultura ancilar, dependente, conformista e submissa; basta ver o que dizem e escrevem alguns de nossos intelectuais, uns abertamente cooptados por dinheiro (dólares), outros, por desespero existencial”. Desde então, os motivos para as queixas só aumentariam.

O Brasil mudou – não necessariamente para melhor –, e Cláudio Abramo não viu. Faltou-lhe um pedaço a mais de vida para conferir o resultado da assembleia constituinte que o animava – a decretação solene do fim da quartelada de 1964, um regime de força cruel e fracassado –, ou para acompanhar o embuste da eleição presidencial direta de 1989, que levou ao poder Fernando Collor de Mello, um playboy fantasiado de “caçador de marajás”. Faltou-lhe vida para ver a ascensão do neoliberalismo destruidor e entreguista de Fernando Henrique Cardoso, a experiência conciliadora da frente popular encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores, o (novo) golpe da ultradireita, amparado por juízes e procuradores de uma força-tarefa obscura, aninhada na “república” de Curitiba, e a tragédia do país entregue à boçalidade de Jair Bolsonaro e à devastação impiedosa da peste.

Sentimos falta de Cláudio Abramo nesses anos todos, da atualidade da sua crítica, do conteúdo fulminante dos seus diagnósticos. Eis um deles, que permanece: “no jornalismo brasileiro de hoje se fazem coisas ignominiosas: […] são os pequenos grupos, as pequenas panelas que dominam as redações e que decidem quem é bom e quem não é”. Ensinamento triste e verdadeiro deixado no livro póstumo, entre tantos outros. Fiquemos com ele, com todos eles, então. Para que possamos seguir, para que não se perca de vez a esperança.

(Uma homenagem atrasada ao Dia do Jornalista,  comemorado em 7 de abril).

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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