Com Donald Trump presidente dos EUA, nasce o ovo da serpente

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Clovis Rossi – Folha de São Paulo

O eleitorado norte-americano rompeu nesta terça-feira (8) a casca do ovo da serpente que Donald Trump incubou durante toda a campanha.

Estão, portanto, a solta todos os demônios que o politicamente correto havia soterrado ou pelo menos amenizado na sociedade dos Estados Unidos.

Está aberta, por exemplo, a temporada de caça do imigrante, seja ele latino ou muçulmano. Ilude-se quem pense que a perseguição será apenas aos imigrantes ilegais —que já são ponderáveis 11 milhões.

No Reino Unido, após a vitória do “brexit” —também um voto contra a imigração—, sucederam-se episódios de violência contra imigrantes legais. Não há como imaginar que será diferente nos Estados Unidos de Trump.

Está igualmente aberto o caminho para a humilhação das mulheres. A “conversa de vestiário”, como Trump alegou para referir-se a seus comentários boçais sobre mulheres, muda-se para o Salão Oval da Casa Branca.

Está ainda aberto um tremendo fosso entre ponderável fatia do establishment acadêmico, midiático e artístico, francamente anti-Trump, e o eleitorado que preferiu o milionário.

Os Estados partiram-se exatamente ao meio entre a elite e o “uomo qualunque”, que, no entanto, escolheu para representá-lo um membro da elite dos negócios —uma espécie de Beppe Grillo americano.

Está, por fim, criada uma figura muito comum na América Latina mas praticamente desconhecida nos EUA, a do caudilho populista.

Como assinala Fareed Zakaria (CNN/”Washington Post”) em artigo para o mais recente número da revista “Foreign Affairs”, as dificuldades que enfrentam as economias desenvolvidas, inclusive a americana, levaram a um desejo por “soluções dramáticas” e “por um líder decidido e desejoso de decretá-las, e que dispensaria os pesos e contrapesos da democracia liberal”.

São justamente esses pesos e contrapesos que dão inestimável vigor aos Estados Unidos, mesmo nos tempos mais difíceis.

Durante toda a campanha, Trump desafiou boa parte dos consensos em que se assentou desde sempre a democracia norte-americana. Terá agora, com o comando do país nas mãos, condições e capacidade para fazer vergar os contrapesos ao peso da Casa Branca?

Em circunstâncias normais, apostaria que não, mas o agora presidente eleito estraçalhou todas as apostas anteriores de bom senso.

Todos esses potenciais problemas são apenas dos Estados Unidos? Não, em primeiro lugar pela capacidade de propagação de tudo o que de bom e de mau ocorre na superpotência.

Não, também, porque o lema de Trump (fazer a América grande de novo) implica impor perdas a todos os rivais potenciais dos Estados Unidos, a começar da China, e até a alguns aliados.

É impensável que os chineses, ainda mais sob a liderança de outro caudilho como Xi Jinping, aceitam qualquer redução no seu papel de ascendente potência global.

Talvez, no fim do dia, Trump não passe de um fanfarrão que será submetido ao controle dos diferentes fatores de poder que agem nos Estados Unidos —e não só neles. Em especial, os próprios companheiros de Trump, os homens de negócio, serão tentados a contê-lo, para evitar o mergulho no desconhecido que nunca é bom para os negócios.

E, como já disse um antecessor remoto de Trump, o presidente Calvin Coolidge, “o negócio da América são os negócios”. Acaba natural que a América eleja um negociante.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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