O presidente Lula está diante de um problema sem solução simples: como contemplar o ministro Gilmar Mendes nas escolhas do novo procurador-Geral da República e do próximo colega dele no Supremo sem fortalecê-lo a ponto de criar uma sociedade política sem retorno? E mais: como prestigiar Gilmar e seus numerosos aliados no Judiciário e no Congresso sem enfraquecer demasiadamente a ala jurídica do PT?
Há quatro nomes e duas forças políticas nesse jogo – estas não são coesas nem necessariamente antagônicas, mas as disputas pela PGR e pela próxima vaga no Supremo têm potencial para afastá-las. Ao lado de Gilmar Mendes, estão, entre outros, o ministro Alexandre de Moraes, o subprocurador Paulo Gonet e o ministro da Justiça, Flávio Dino. O que se pode chamar de ala jurídica do PT não tem um líder – não se confunde com o grupo “Prerrogativas”. Seus expoentes, nesse momento, são o advogado-Geral da União, Jorge Messias, o subprocurador Antônio Carlos Bigonha, o advogado Marco Aurélio Carvalho e o senador Jaques Wagner.
Bancados por seus respectivos padrinhos, Flávio Dino e Jorge Messias disputam a vaga de Rosa Weber. Na PGR, as opções são Gonet e Bigonha; por fora, com apoio de Aras, corre o subprocurador Luiz Augusto Santos Lima. Qualquer nome fora desses cinco será uma grande surpresa para os envolvidos nas articulações. Todos homens, como previsto.
O fator gênero é, tanto para Lula quanto para os principais atores dessas articulações, um problema de imagem – uma questão a ser resolvida politicamente, e não um critério. Apenas a primeira-dama Janja da Silva tem prestígio, embora por ora insuficiente, para influenciar na escolha de uma mulher para quaisquer uma das vagas. São outros os princípios e os interesses que regem ambas as decisões. Eles são nítidos a quem se dispõe a enxergá-los.
Lula já demonstrou, direta e indiretamente, querer dos dois indicados lealdade política e afinidade ideológica. Lealdade envolve abertura para diálogo e, como sempre está implícito em nomeações dessa envergadura, blindagem criminal – especialmente no caso do PGR, o único que pode oferecer denúncia contra um presidente e demais autoridades com foro no Supremo. Afinidade se mistura à lealdade. Manifesta-se, hoje, no entendimento comum à elite de Brasília de que a Lava Jato foi longe demais; uma maneira de dizer que errados estavam os investigadores, não os investigados. Esse entendimento associa-se a outro: o de que Jair Bolsonaro e o bolsonarismo precisam ser expulsos da vida pública.
Dois ativos tornam-se fundamentais nesse jogo: demonstrações de lealdade a Lula e demonstrações contra a Lava Jato e seus próceres, como Sergio Moro e Deltan Dallagnol. A combinação dos dois tipos de demonstração numa só é o tipo de oportunidade perfeita para se fortalecer perante o presidente e Gilmar – vide o exemplo de Cristiano Zanin.
É por que isso Flávio Dino cresce tanto às vésperas da nomeação do sucessor de Rosa Weber. O ministro da Justiça defende Lula incessantemente. E ataca a Lava Jato – qualquer pessoa ou aspecto da Lava Jato – com a mesma intensidade. Age da mesma forma em relação a Bolsonaro e bolsonaristas. Faz o que Lula aparenta mais querer, mesmo que essa postura agrave o longo processo de contaminação política da Polícia Federal. Defende como pode Alexandre Moraes e a cruzada do ministro contra o bolsonarismo. (Em Brasília, devido processo legal é um ativo, não um princípio: e somente para os amigos; jamais para os adversários.)
O problema político para Lula é o desequilíbrio que suas decisões podem causar entre as duas forças políticas. Gonet, ex-sócio de Gilmar, no comando da PGR significa, em tese, a manutenção da concórdia assegurada por Augusto Aras – a extinção prática e lenta de investigações criminais contra autoridades com foro. Ninguém duvida da qualificação técnica de Gonet. Mas ninguém espera que os rumos da PGR alterem-se com ele à frente do órgão.
Para Gilmar, adversário há duas décadas de procuradores e promotores, a nomeação de Gonet representaria um triunfo inigualável. Que isso possa acontecer numa gestão do PT revela o quanto Lula e seu partido mudaram. Gilmar, afinal, sempre esteve no mesmo lugar, com as mesmas posições. Lula mudou tanto que mencionar a lista tríplice para escolha do PGR em 2023 parece uma piada envelhecida, de um país que nunca existiu.
A opção por Bigonha, simpático ao PT, poderia ter, ou pode ter, o mesmo efeito prático desejado por Lula. Fortaleceria os líderes do partido e subtrairia de Gilmar um troféu que ele persegue há anos. Não à toa, Gilmar tenta alertar o presidente de que Bigonha tem o mesmo perfil de Rodrigo Janot. De que, com Bigonha, as “práticas” da Lava Jato podem ressurgir. Bigonha, de fato, não tem ascensão entre os colegas. Críticos da candidatura dele, e eles são numerosos, gostam de dizer que as habilidades de Bigonha como pianista precedem as virtudes dele como procurador da República. Seja como for, a construção da candidatura de Gonet tomou tal tamanho que, caso ele não seja nomeado, Gilmar sofrerá uma derrota expressiva. E uma derrota desse jaez arrisca pôr fim à aliança tática entre o ministro e seu grupo e o governo Lula.
Seja com Gonet, seja com Bigonha, seja com Luiz Augusto Santos Lima, Lula terá uma dificuldade aparentemente intransponível na PGR: certeza de diálogo e lealdade. O presidente não tem mais relações políticas fortes no Ministério Público, nem conselheiros jurídicos de confiança, como eram os advogados Sigmaringa Seixas e Márcio Thomaz Bastos. Em qualquer cenário, Lula terá que construir uma relação política com um PGR já nomeado. E será um Lula traumatizado pela prisão, pela Lava Jato e pelo poder do Ministério Público.
A indicação de Gonet à PGR pode satisfazer Gilmar, mas a indicação dupla de Gonet e Dino resultaria num Gilmar anabolizado. Gilmar está longe de ser o único apoiador de Dino. Políticos de expressão e grandes empresários estão encantados com a perspectiva de que o ministro da Justiça chegue ao Supremo. Trabalham silenciosamente por ele. Acreditam que Dino é mais pragmático do que Jorge Messias. O favoritismo do ministro da Justiça é tamanho que seus aliados indicam que a vaga se tornou dele para perder.
Diante dos interesses de Lula e da condução política que ele estabeleceu para essas nomeações, porém, o combo Gonet e Jorge Messias faria mais sentido. Além de contemplar Gilmar, a indicação de Messias prestigiaria o PT e a maioria dos advogados influentes associados ao partido e ao governo. Seria uma aposta no partido que tanto apostou em Lula, mesmo nos momentos mais difíceis da Lava Jato.
O AGU conduz sua campanha com discrição; Dino, com barulho. Uma vez investido no Supremo, qual dos dois, se a escolha se ativer a eles, teria menos apetite para construir uma carreira política na corte, com um projeto próprio de poder? A resposta parece óbvia – e assim é encarada entre alguns dos principais interlocutores de Lula. Ainda assim, os interesses de Lula no Judiciário e no Ministério Público estão mais alinhados com Gilmar Mendes do que com seus correligionários. Ao enfrentar o dilema que se apresenta, Lula indicou que tentará conciliar as duas forças políticas – desde que elas sirvam a ele. Mas, se for preciso escolher um aliado, Lula optará por Gilmar. O PT depende do presidente e sempre estará a seu lado. Gilmar está do lado de Gilmar. É um aliado poderoso – e um adversário ainda mais formidável.