Eu odeio Millôr

O Humor morreu / como dá depressão / foi indo e se perdeu / num grande vagalhão / de textos vãos / E o pior, Deus! / É que o filet minhão / o Millôr já escreveu Millôr Fernandes, como eu te odeio. Sua inteligência afiada, sua criatividade infindável, suas observações perfurantes. Tudo isso não passa de uma afronta ao meu próprio ser carente de genialidade.

Como é possível alguém possuir tantas virtudes e me deixar aqui, um mero comediante de aldeia, lambendo as feridas da dor de cotovelo?

Não, não consigo suportar sua versatilidade. Enquanto me debatia em minhas tentativas comezinhas de humor, você desenhava, escrevia, pintava, atirava suas flechas de sagacidade em todas as direções. E, é claro, o público adorando tudo, enquanto luto para arrancar um risinho de canto de boca de meia dúzia de seguidores (ainda) fiéis.
Sua coragem é outro ponto que me revira o estômago, Millôr Fernandes. Você nunca teve medo de enfrentar os tabus e quebrar as barreiras sociais com seu sarcasmo. Eu, por meu lado, fico trancado em minhas limitações, mal conseguindo formular uma piada sem que ofenda a avó de alguém.

E a longevidade na carreira então? Mal consigo manter um emprego, e você, década após década, enriquecia a raça com um humor que beirava a profecia. É como se o tempo tivesse medo de tocar em você, enquanto em mim ele pinta cabelos brancos como punição por não ser capaz de criar algo que se compare à sua fineza de espírito. Seu frasismo, neologismos, inovações linguísticas são uma ofensa direta ao meu escasso dicionário. Esboço palavras, busco inventar algo minimamente engraçado e crítico ao mesmo tempo. Já você é essa linha de montagem de expressões que ecoarão para sempre na língua portuguesa, me deixando com a sensação de que todas as palavras já foram tocadas por sua lapiseira.

Muito se fala de seus textos jornalísticos, contudo, poucos souberam ir tão fundo na dramaturgia. Isto me enraivece ainda mais. O Homem do princípio ao fim, A viúva imortal, Flávia, cabeça, tronco e membros, Liberdade, liberdade, A História é uma história. Fora as traduções de Shakespeare e outros clássicos. Arre!

O pior de tudo, Millôr Fernandes, é que você fazia isso tudo com o pé nas costas, como se o mundo inteiro fosse uma grande piada que só você compreendia. Reviro-me em minha própria amargura e invídia, e você mostra ao mundo que a inteligência e o humor podem coexistir em uma sinfonia perfeita. Por isso, senhor Millôr Fernandes, estou o execrando no dia do seu centenário. Eu o desprezo por ser um farol em meio à minha ilha de pequenez. E, apesar de todos os meus esforços, sei que nunca chegarei nem perto de seu esplendor. Ah, Millôr Fernandes, como eu te odeio!

Nota de rodapé: porém, como dizem os filósofos das redes sociais, isso não deixa de ser uma forma de amor.

(Publicado originalmente no Estadão, 16/08/2023 )

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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