Ideólogos dos só dois gêneros parecem confundir diferenças com fantasias lúbricas
Como mostrei na semana retrasada, existe uma crença, contrária à evidência empírica e científica, de que, nos humanos, haveria só dois gêneros bem distintos. Tudo bem, cada um tem as crenças, ideologias ou fantasias que lhe convêm.
Sempre houve praticantes dessa ideologia de que há só dois gêneros. Hoje, parece que um deles será ministro da Educação e poderá exigir que as crianças sejam doutrinadas numa crença ou ideologia que nada tem a ver com a realidade. Da mesma forma, ele poderia exigir que o mundo seja explicado como criação divina em sete dias e proibir que se fale de Big Bang ou da evolução das espécies.
O pretexto para silenciar a complexidade da questão do gênero nos humanos é que sua menção colocaria grilos na cabeça de nossos rebentos.
Ou seja, se os jovens souberem que a diferença de gênero é menos binária do que contam pastores e rodas de botequim, eles poderiam duvidar de sua própria identidade e, quem sabe, tornar-se travestis, intergêneros ou mesmo querer mudar de sexo.
Em geral, os que defendem a ideologia de que há só dois gêneros afirmam que nada psicológico ou cultural importa na constituição da identidade de gênero: a “natureza” se encarrega de tudo. Tem pinto? À esquerda. Não tem? À direita.
Claro, essa crença ou fantasia esbarra em vários problemas, pois a natureza distribui cartas bem mais incertas. O que acontece se tenho pinto, mas ovários em vez de testículos —vamos cortar fora os ovários ou o pinto?
E o que acontece se tenho ovários, vagina e tudo, mas olho para meu corpo com desgosto, quero arrancar meus seios, tomar hormônios e ver crescer barba e pelos? Vamos fazer o quê? Internar? Exterminar à la Hitler?
Mas voltemos à argumentação. A pedagogia do silêncio sugere: não digam às crianças que existem transgêneros, intergêneros etc., porque elas vão se extraviar.
Francamente, as crianças não são burras a ponto de se engajarem sem necessidade num caminho no qual constatam, pelo bullying de cada recreio, que é árduo e sofrido. As crianças sabem que é doloroso viver com um corpo que a gente estranha —ainda mais se for numa sociedade que não quer entender bulhufas de quem você é.
Numa contradição bizarra, rodas de botequim e pastores dizem que a identidade de gênero vem da natureza, mas querem banir o tema das escolas porque acreditam que a identidade de gênero possa ser formada e transformada pela experiência em sala de aula. Então, ela vem da natureza ou não?
Enfim, por que a existência de intersexos e transgêneros é negada pela ideologia de gênero de rodas de botequim e pastores? E, sobretudo, por que essa existência seria, para alguns nas rodas e nas igrejas, vergonhosa ou obscena?
Um número considerável de humanos são intersexos (ou seja, seu sexo anatômico não é completamente definido) e/ou sofrem de “disforia de gênero” (ou seja, discordam visceralmente do gênero que lhes foi atribuído por nascença).
Para alguns ideólogos de gênero, esses fenômenos constituem uma ameaça para os costumes.
Há pastores e rodas de botequim para entender as inquietudes de gênero como uma lascívia excessiva, ou seja, para confundir uma dificuldade no sentimento de identidade com, por exemplo, a fantasia sexual de ser do sexo oposto e de gozar ou ser gozado como se fôssemos do sexo oposto.
O “trans”, para eles, é o “sem vergonha” que foi ver como se goza do outro lado.
A fantasia sexual de gozar como se fôssemos do outro sexo é trivial, sobretudo nos homens. Ela é frequentemente reprimida porque ameaça o lugar social do “macho”: como é que vão me levar a sério se souberem que sonho em gozar como uma mulher?
Instala-se assim a dinâmica do moralismo: é proibido os outros fazerem o que eu desejo e não me permito.
Conclusão. Há os que apresentam uma indefinição genética de seu sexo. Há os que sentem pertencer a um gênero diferente do que seu corpo aparenta. E há os ideólogos dos só dois gêneros que parecem confundir tudo isso com fantasias lúbricas.
Em geral, para esses ideólogos, negar a existência de transgêneros e intersexos é o jeito para negar suas próprias fantasias de gozar, por um instante, numa transa, como se fossem do outro sexo. Deve haver uma maneira mais simples de eles resolverem esse problema, que é só deles —uma maneira menos onerosa para os outros e para as crianças, que, na escola, têm o direito de aprender o que é.