Me chamaram do hospital. O aviso é que ele estava lá na pedra. Pedra é o local para onde vão os que morreram. Na pedra se troca a roupa, faz-se a barba, enfim, prepara-se o morto para o caixão e o velório. Naquela cidade os que são apenas corpo ainda são velados na sala de suas casas. No local havia apenas um funcionário. Meu pai estava lá, com o olho esquerdo aberto. Cristalino. Passei a espuma no rosto e ao começar a deslizar a lâmina do aparelho em seu rosto, comecei a conversar com ele. Contei que pela primeira e última vez via seu corpo nu. Falava e olhava para dentro daquele olho. De alguma foram sabia que estava sendo ouvido.
Ele sempre se manteve magro, ossudo, rosto vincado como um mocinho ou bandido de faroeste. Meu herói sempre foi calado, mas falava pelo olhar – e todos entendiam. Assim, depois que partiu, fui apresentado para o que Jorge Amado popularizou como estrovenga.
Brinquei dizendo que aquele era um dos motivos para a baixinha, mulher dele, nunca o ter abandonado. Ele riu. Vi agora, na lembrança, o sorriso raro. Terminei o serviço, coloquei a roupa dele e o deixei naquela pedra. Depois ajudei a engavetá-lo na outra, no cemitério simples e encravado no meio a uma plantação – perto do sítio onde nasceu e eu fui feito. Ao longe, dá para ver dali, sobre a cidade, um c.
Sobre Solda
Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido
não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em
Roberto José da Silva - Blog do Zé Beto e marcada com a tag
Zé da Silva. Adicione o
link permanente aos seus favoritos.