Quem vai para a internet pedir a cabeça de alguém é tão diferente do hater que diz combater?
Conheço gente que não diz mais o que pensa em redes sociais e até em círculos mais íntimos com medo da reação de familiares, amigos, colegas de trabalho, de seguidores. Não porque tenham opiniões controversas, porque sejam preconceituosos. Mas porque o preço de pensar, questionar, duvidar, trazer o contraditório têm ficado cada vez mais alto. Muita gente já não está disposta a contrair uma dívida, às vezes injusta, que talvez não possa jamais ser paga, de acordo com as regras de convivência estabelecidas por parte de uma sociedade cada vez mais inflexível.
A tolerância em relação às opiniões desapareceu. Com receio dos julgamentos, mas também para ser aceito, admirado, exaltado, percebe-se que os discursos estão cada mais sendo feitos sob medida para agradar uma audiência irascível diante de expectativas que crescem sem parar. O preço que se paga por aplauso, bajulação e um lugar no olimpo das virtudes morais. Ou isso ou o cancelamento compulsório. A moda que começou nos Estados Unidos, nos primórdios do #metoo, tem acertado cada vez mais alvos, mas o efeito prático, que seria transformar a sociedade num lugar mais tolerante, é o oposto.
Não se trata de fechar os olhos para racismo, homofobia, machismo, bullying, discursos de ódio, o problema é quando se apela ao tal cancelamento. Para banir e jogar ao ostracismo o intolerante, o remédio é sempre tão ou mais violento do que a ação que provocou a reação dos que se enxergam como os guardiões da ordem. O que se vê é mais xingamento, massacre, ridicularização, partindo de gente que se julga moralmente superior, mas que se transforma em agente linchador apesar do seu verniz pretensamente intelectual.
Na lista dos “cancelados” pela justiça da internet há de fato racistas, homofóbicos, machistas, maus caracteres, mas há também gente que é só ignorante, burra, inconsequente. E outro punhado que apenas ousa dizer aquilo com o que não concordamos. Exige-se perfeição de pensamento e de atitude. Não significa que as pessoas não sejam passíveis de críticas, mas fica claro que presunção da inocência, direito à defesa, nada disso é garantido nesse tribunal. As pessoas são julgadas, condenadas, “canceladas”, mas em geral o efeito prático é nulo, porque não há espaço para argumentação, discussão, reflexão, que sirvam para que o comportamento das pessoas evolua e mude. Por melhor que seja a intenção, se o resultado é a produção de mais ódio, de sofrimento de outra pessoa, apenas abre-se espaço para que mensagens de preconceito e estupidez sejam amplificadas e encontrem eco em quem se identifica.
Na cultura do cancelamento, por vezes, me vejo com menos ojeriza do broncossauro que falou ou fez uma idiotice qualquer do que pelas pessoas que vestem o manto da pureza intelectual, da defesa dos direitos humanos, mas que na primeira oportunidade se manifestam de forma tão idiota, raivosa, intolerante quanto o ignorante, preconceituoso. Defender e participar de linchamentos virtuais apenas coloca no mesmo patamar agressores e ofendidos. Gente que vai para a internet com hashtag de cancelamento contribui para a barbárie em que vivemos hoje.
Ninguém é tão perfeito e infalível que possa sentir-se à vontade para bancar o inquisidor. Mais do que desejo de justiça, o que move os canceladores é o poder. Quanto mais famoso o cancelado, mais fácil acumular likes e compartilhamentos, ganhar fama instantânea, quase sempre efêmera. Além da ilusão de estar do “lado certo”, de fazer parte de um grupo que, na teoria, é melhor do que os outros, de pertencer a um movimento de limpeza do mundo, de sentir-se engajado, socialmente empoderado, como se fosse possível remover cada indivíduo que não se adequa 100%. Um movimento, muitas vezes, suicida, em que os antagonistas defendem as mesmas bandeiras, ainda que de formas distintas. Feministas esculacham feministas, ativistas de movimentos sociais disputam protagonismo, apoiadores de causas importantes são defenestrados, todos queimando na fogueira da vaidade.
O resultado é que vemos gente que diz combater a cultura do ódio com mais ódio, o que não faz o menor sentido. A pessoa que vai para a internet pedir a cabeça de alguém em nome de uma causa é tão diferente do hater que ela diz combater? Na teoria pode parecer que sim, na prática é apenas um idiota útil a serviço de mais intolerância.
O único aspecto positivo é que estamos mais vigilantes e, sim, o mundo está mudando, mas casos de preconceito que merecem punição devem ser denunciados. Virar persona non grata para um grupinho na internet serve apenas para aplacar a sede de vingança desses que se julgam justiceiros do bem, mas educativo mesmo é diálogo e, quando necessário, ter que acertar as contas na justiça.
Por enquanto o que se vê é a morte da liberdade de expressão e da comunicação. As pessoas falarão cada vez mais para suas bolhas, procurando apenas as palavras mais bonitas, medindo com cuidado o efeito de cada uma delas, para que apenas o que seu interlocutor quer ouvir seja emitido. Ainda prefiro quem diz o que pensa, o diálogo, o diverso, a provocação, o interlocutor interessado e interessante. Sem perceber, vozes que gritam contra a censura têm sido as que mais contribuem para que as pessoas se calem por medo dos julgamentos. E quem fecha a boca e foge de possíveis linchamentos não são os radicais, mas os moderados. E no meio dessa gritaria ninguém mais se ouve.
É claro que o botão do “deixar de seguir” é sempre uma opção para casos perdidos. E, francamente, também temos trabalho suficiente com nossa classe política que nos dá motivos de sobra para que sejam fiscalizados, cobrados, criticados, julgados, ironizados. Ônus da vida pública, de que se espera compromisso com a liturgia dos cargos.
O mundo nunca será esse lugar perfeito, livre de injustiças, de racismo, machismo, homofobia. O que não significa que não podemos lutar todos os dias para que seja um lugar melhor. Mas para isso não podemos escolher as mesmas armas que dizemos querer combater.