Da Natureza

Sou católica, mas rejeito o mea-culpa cristão, estranho o sotaque andrógeno dos padres, não creio em redenção pós-mortem e sou propensa às tentações da carne.

Na missa de sete anos da morte do meu pai, no belo Mosteiro de São Bento, tentei, mais uma vez, me ater ao rito, mas foi em vão.

Na saída, padre Matias, um clérigo de vocação, permitiu que visitássemos o claustro.

Na calma atemporal do pátio interno, admirei a dedicação do sacerdote à biblioteca do mosteiro. Ali, sim, comunguei de sua devoção à Igreja.

A arte e o intelecto são a luxúria de Matias, prazeres que não enxergo como pecado.

Meu filho, ainda mais avesso à cruz do que eu, acha impossível conciliar a compaixão de Cristo com a morbidez dos dogmas e a riqueza acumulada do clero.

Não o condeno.

O caráter maniqueísta, culposo, masoquista de uma crença nascida do fundo arcaico do Mediterrâneo, destoa do histórico de opulência do Vaticano e do paganismo greco-romano que, ainda hoje, nos rege.

Ganhei de aniversário do poeta Antonio Cicero um livraço que esclarece o paradoxo.

“A Virada” (Companhia das Letras), do teórico e professor de Harvard Stephen Greenblatt, narra a descoberta, em 1417, do poema “De Rerum Natura”, “Da Natureza”, de Tito Lucrécio Caro, por um dos primeiros humanistas, calígrafo e caçador de livros, Poggio Bracciolini.

Escrito no séc. 1 a.C., o poema permaneceu esquecido em um dos tantos monastérios que, depois do apagão do Império Romano, guardaram o que restou do saber da antiguidade.

“Da Natureza” resistiu aos incêndios das bibliotecas, à fúria bárbara e à censura cristã. Seu conteúdo é fiel ao atomismo de Demócrito, ao prazer de Epicuro e à ideia de que o destino dos homens não é regido pela vontade dos deuses.

A ligação entre o poema de Lucrécio e Epicuro veio à luz muito tempo depois do feito de Poggio. Em 1753, rolos de papiro com trechos de “Da Natureza” foram encontrados nas escavações do balneário de Herculano, vizinho à Pompeia, também soterrado pelo Vesúvio em 79 d.C.

A biblioteca da casa abastada de Herculano pertenceu a uma elite epicurista que cultivava uma existência livre do medo da danação divina.

“A Virada” explica o porquê de Platão e Aristóteles terem sido absorvidos pelo cristianismo, enquanto Epicuro foi jogado no lixo da história.

Seu universo sem ideal ou alma transcendente, regido por partículas, com deuses indiferentes à necessidade humana e espécies evoluindo ao acaso não caberia na fé cristã. Difamado, a felicidade terrena que pregava foi transformada em escárnio e excesso.

Os 7.400 versos de Lucrécio serviram de estopim para a Renascença e a modernidade. Bruno, Galilei, Shakespeare, Maquiavel e Botticelli os leram, e também o avô de Darwin, Montaigne, More, Moliére e Thomas Jefferson.

Quem diria que, 600 anos depois de “Da Natureza” renascer das cinzas, a Guerra Santa voltasse à baila e o humanismo caísse em desuso?

Preservamos muitos dos pavores medievais, mas evoluímos ateus. Somos materialistas que rezam o Pai Nosso.

Vem daí a minha dificuldade de comungar na missa, vem de Poggio o prazer intelectual do padre Matias e de Epicuro a profunda empatia que sinto ao caminhar por Pompeia e pensar que, sim, eu poderia ser um deles.

Fernanda-torres

Fernanda Torres – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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