Da nobreza às laranjas

O meu querido amigo Rubem Alves, educador, poeta, escritor, psicanalista e ex-pastor presbiterano, que no próximo dia 19 completará cinco anos de “encantamento”, tinha uma fórmula infalível para descobrir a origem nobre das pessoas: basta observar o tratamento que é dado a elas. Dizia ele que, na sua Campinas, em São Paulo, quando ouvia dizer “a casa de Aurélia”, “o livro de Pedro”, “o aniversário de Margarida”, já sabia que se trata de pessoa ligada à nobreza dos grandes barões do café. “É nesse insignificante de que se encontra a revelação” – assinalava.

Outra maneira, ainda segundo Rubem, está no “insignificante e banalíssimo ato de chupar laranjas”. Ou “vocês pensavam que uma laranja é simplesmente uma laranja”? – indagava ele. E sustentava que laranjas de um mesmo pé podem ser nobres e plebeias. “Depende do jeito como são comidas”. E revelava a diferença, encontrada em sua própria casa: “A família de minha mãe chupava laranja de gomo; a família do meu pai chupava laranja de tampa”. O primeiro modo seria educado e elegante; o segundo, gostoso e descontraído.

Aliás, havia todo um trabalhoso ritual para comer-se laranja de gomo: primeiro, o cuidadoso ato de descascar a fruta. Segue-se a operação de retirar-lhe a película branca abaixo da casca. Depois, a laranja é aberta em duas metades e separam-se os gomos. “Tomam-se, então, os gomos, um a um, e vagarosamente se executa a operação cirúrgica de retirar a pele translúcida em que vêm revestidos”. Com a ponta da faca, extrai-se as sementes e, finalmente, pode-se comer os gomos. Ou o que deles restou.

Ao comer as laranjas pelo gomo as famílias anunciavam as suas origens nobres.

Suponho que a coisa não era muito diferente no restante do Brasil. Aqui no Paraná, por exemplo, era exatamente igual. Digo era porque creio que não é mais. Certas regras vão sendo mudadas ou esquecidas com o passar do tempo. Sobretudo quando a nobreza recolhe-se aos museus e aos livros de história, e os emergentes assumem o comando.

Quando comecei a namorar minha mulher e passei a frequentar a família dela, por parte de mãe, de origem nobre e educação esmerada, onde todo mundo falava baixo e jamais se dava gargalhada, pude constatar isso de perto. Ali, como na Campinas nobre de Rubem, era só “casa de Aní”, carro de João Cid”, “aniversário de Therezinha”. E não só as laranjas eram comidas em gomos, como o pão em pedaços, cuidadosamente fatiado antes de ser levado à boca.

Na família de minha mãe, na velha Lapa dos heróis, também era mais ou menos assim, embora se origem nobre houvesse tinha ficado do outro lado do oceano, nas terras geladas da Alemanha, Prússia e Dinamarca. Mas ali ninguém saía de casa sem “arrumar-se”, mudar de roupa, calçar sapatos e dar uma ajeitada nos cabelos. Ainda que fosse para ir fazer uma comprinha de última hora no armazém da esquina.

Tudo isso não tinha grande importância na família de meu pai, embora ela também fosse civilizada. Ali, a vaidade era outra: a correção, o respeito aos princípios, a ojeriza à mentira e aos farsantes. Ali, prevalecia a sinceridade e a franqueza, ainda que isso nem sempre fosse agradável. Ou educado. Todo mundo era recebido na cozinha, ao lado do fogão de lenha, quase sempre aceso, onde a conversa era animada e proveitosa; na sala principal, que não sei por que era chamada de “varanda”, apenas visitas de cerimônia.

Velhos tempos, em que se era feliz e não sabia…

(Texto integrante do livrinho “Como diz Rubem Alves”, do acima assinado, edição caseira, de poucos exemplares. Um deles entregue ao saudoso Rubem Alves) 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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