RIO DE JANEIRO – Foi num conclave de intelectuais a que compareci outro dia. Em meio à plêiade de senhores escutando a fala do presidente da mesa – fascinante como costumam ser as falas dos presidentes de mesas –, destacava-se um par de pernas cruzadas na fila de cadeiras ao meu lado. Pertencia a um senhor de calças de risca, meias brancas, sapatos pretos e… galochas. Galochas são calçados impermeáveis, de borracha, que se usam – ou usavam, pensei que estivessem extintas – por cima do sapato, para protegê-lo das poças d’água.
Mas era um daqueles fins de tarde no Rio em que o sol não quer ir embora, como tantos neste verão. Então, por que as galochas? Porque, na cabeça do cidadão, podia ser que chovesse. Com isso, fazia jus à expressão chato de galocha – o pessimista, o inconveniente, que segura o nosso braço e tenta nos convencer de que isto ou aquilo não vai dar certo. Enfim, o chato.
Olhando em torno na dita cerimônia, reconheci um sociólogo apto a ser chamado de anta de tênis – criação imortal de Ivan Lessa e Jaguar no “Pasquim”, e que todo mundo sabe o que significa. Alguns metros adiante, outro grupo incluía um historiador resmungão, habituado a subir nas tamancas, e, por acaso, outro que viera ao mundo calçando as sandálias da humildade, como dizia Nelson Rodrigues. Pé de chinelo, não vi nenhum – ao contrário, quase todos os presentes, atracados a empregos públicos, pareciam já ter garantido o seu pé de meia.
E só então me dei conta: galochas, tênis, tamancas, sandálias, chinelos, meias – todas as imagens se referindo ao pé e a seus acessórios. Dei uma panorâmica no ambiente e logo vislumbrei, num canto, uma animada rodinha de clientes da Sapataria Progresso.
Depois é que foi bom. Como é de praxe no Rio, saímos todos e fomos para um saudável pé sujo na esquina.
Ruy Castro – Folha de São Paulo