Posição sobre Ucrânia só não terá importância se Brasil decidir tornar-se irrelevante
“Não tem nenhuma importância”, decretou o ex-chanceler Celso Amorim, referindo-se à inclusão de Lula numa lista ucraniana de “oradores que promovem narrativas de propaganda russa”. A lista, em si, talvez não tenha. A postura do provável futuro presidente sobre a guerra na Ucrânia tem.
Segundo Amorim, Lula “tem condenado sempre a invasão da Ucrânia pela Rússia”. A afirmação reduz a verdade a mero jogo de palavras. O ex-presidente declarou que o ucraniano Zelenski “é tão responsável pela guerra quanto Putin”. Ou seja: agressor e vítima dividem a culpa ao meio. Daí decorre a posição de neutralidade formal advogada pelo PT diante de uma guerra de conquista.
A frase de Amorim sobre a (falsa) condenação de Lula inclui o trecho: “agora, a gente tem que reconhecer um conjunto de circunstâncias”. Quais? Lula, ele mesmo, já desvendou o mistério: a “circunstância” que torna Zelenski corresponsável encontra-se no desejo ucraniano de ingressar na Otan. Ocorre que tal desejo é apenas o pretexto para a agressão russa. Prova: a invasão prossegue, meses depois da Ucrânia ter desistido explicitamente daquela meta.
Putin esclareceu várias vezes os objetivos da invasão. Trata-se, na linguagem do Kremlin, de “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia, senhas cínicas para descrever a ambição de transformar o país vizinho em protetorado russo e incorporar à Rússia vastas parcelas do território ucraniano.
A Constituição consagra a soberania e a integridade territorial das nações como norte de nossa política externa. Tem importância, Celso, o desprezo pelos princípios constitucionais brasileiros. Indica que, entre as inclinações ideológicas do PT e os valores definidos no contrato político nacional, a política externa de um futuro governo Lula escolherá as primeiras.
A frase completa de Amorim conclui-se com um “sobretudo se a gente quer uma solução”. A “solução” –isto é, a paz– também figura como álibi de Bolsonaro para a posição oficial brasileira sobre o conflito. O governo Bolsonaro “condena” retoricamente a invasão russa, mas declarou “solidariedade” à Rússia e condena (sem aspas) as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia. Na prática, o Brasil alinhou-se ao objetivo russo de isolar a Ucrânia. Por isso, registrou Bolsonaro, “a relação com Putin está dez” –e, ao que parece, continuará perfeita sob um eventual governo Lula.
Qual é a rota para a paz? Quando Amorim fala em “solução” está sugerindo que a Ucrânia ceda novos territórios, além dos já ocupados pela Rússia em 2014. Contudo, ainda que fizesse sentido propor uma “solução” similar à tentada em 1938 por franceses e britânicos em Munique, as sentenças do Kremlin iluminam a extensão das exigências russas. Moscou almeja a supressão da Ucrânia como Estado independente. A alternativa é impor negociações realistas de paz, o que depende de golpes militares profundos assestados pela Ucrânia –ou seja, em parte, das sanções e da ajuda militar ocidental.
No caso, os princípios constitucionais e o cálculo frio do interesse nacional alinham-se totalmente. A Rússia permanecerá isolada do Ocidente no horizonte previsível. A adoção da posição bolsonarista de “solidariedade” à Rússia por um governo Lula estreitaria os caminhos de cooperação estratégica e tecnológica do Brasil com os EUA e nossos parceiros europeus.
A “neutralidade” pró-russa de Bolsonaro deriva da hostilidade da extrema-direita ao “globalismo” –isto é, ao modelo ocidental de democracia representativa. Já a “neutralidade” pró-russa de Lula nasce de um anacrônico “anti-imperialismo” incapaz de identificar o impulso imperial na Rússia de Putin. A posição brasileira sobre o principal tema atual das relações internacionais só não terá importância se o Brasil decidir tornar-se irrelevante. O conselheiro precisa oferecer conselhos melhores.