NÃO CONCORDO COM ELA. Em tudo, menos na paixão pela neta e pelo gintônica. Décadas de convívio só pisou na bola comigo. Uma vez disse que até pagaria para eu ficar com a filha (‘ficar’, aqui, no modo transitivo definitivo de antigamente). Nunca pagou, nunca cobrei, ela finge que não disse.
SABIA NADA, a inocente. Fosse o caso, eu daria cheque pré-datado. Uma crônica do incorretamente educado nossa relação. Um dia me elogiou – “perto dele você é um Adônis”; o ele, mais feio que a necessidade. Também a elogio, “madame desacontece”, o que diz de manhã, nega de noite.
TARDE DA NOITE, ontem, ligou para cá. Entusiasmada com o discurso de Lula ao sair da prisão: “inteligente, as frases com começo, meio e fim, não ofendeu ninguém, que diferença!”. A diferença, a bom entendedor, nas entrelinhas do elogio. “Antonia vai votar nele”. Antonia, a cuidadora.
DESACONTECEU DE NOVO, pensei. Um ano atrás só entusiasmo e elogios para o outro mito, os defeitos só o mito metamorfose os tinha. Antonia percorria o bairro, missionária, a distribuir santinhos de Bolsonaro. Saía mais cedo, autorizada pela patroa, que, fina e elegante, recusava fazer a arminha.
ORA DIREIS, perdeste o senso, tresloucado genro. Eu vos direi, no entanto, que passei a noite a pensar, a resgatar-lhe as palavras sobre os dois mitos. Tirando o elogio que me fez e a promessa que não cumpriu, rendo-me à sua clarividência. Aos 97 anos ela decifrou o Brasil: como ela, aqui tudo desacontece.