Uma biografia exige paciência, sorte e furos na sola do sapato; não é coisa para algoritmo
Outro dia, por casualidade, o advogado Pierpaolo Bottini ouviu alguém recitar “Ilusões da Vida”, o famoso poema de Francisco Otaviano —”Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu…”—, e quis conhecer melhor o poeta. Consultou o ChatGPT, que prontamente respondeu: “Francisco Otaviano foi um político e poeta brasileiro do século 19. Eis aqui um de seus poemas”. E mandou para Pierpaolo a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá…”.
Bem, não sejamos ranzinzas. O infalível ChatGPT não é obrigado a saber tudo. Mesmo porque, como poeta, Otaviano não foi um Gonçalves Dias, nem mesmo um Fagundes Varella. Lembrando-se de Fagundes Varella, Pierpaolo resolveu checar no ChatGPT o pungente “Cântico do Calvário”: “Eras na vida a pomba predileta/ Que sobre um mar de angústias conduzia/ O ramo da esperança. Eras a estrela/ Que entre as névoas do inverno cintilava…”. Pois, em vez disso, o ChatGPT enviou-lhe um hino evangélico intitulado “Cântico do Calvário”. E não só um, mas quatro hinos evangélicos com esse título. Decididamente, o ChatGPT não é da literatura.
Já escrevi aqui que, se se metesse a produzir uma biografia, o ChatGPT conseguiria macaquear o estilo de um autor. E, sim, talvez gerasse pautas com centenas de perguntas e as aplicasse a 200 fontes de informação. Mas quem vai determinar essas fontes? As melhores são as que nos surgem de repente, às vezes por acaso. E aquelas que se fazem de difíceis? E o olho no olho com elas, sem o que não se arrancam certas informações? E a descoberta de documentos perdidos em gavetas?
Uma biografia exige paciência, alguma esperteza, sorte e buracos na sola do sapato. O algoritmo poderá fazer tudo isso?
Um dia, talvez. Mas só depois de aprender que as aves que aqui gorjeiam não passam pela vida em branca nuvem nem gorjeiam como lá.