A moça do laboratório era jovem, muito jovem. Não acredito em Deus, mas há momentos em que recorro a Ele, na esperança que, mesmo não existindo, Ele me ouça, e não tenha ressentimentos. Pedi a Deus que, apesar da sua evidente pouca idade, a moça tivesse se especializado em inserção da agulha – aquele instante que, numa tourada, corresponderia a uma estocada certeira no coração do touro.
Talvez para aliviar um pouco a solenidade do momento, a moça falou:
– As seringas são descartáveis.
Vi uma oportunidade para colaborar com a descontração. Disse:
– Eu também sou.
Eu não esperava uma gargalhada. Um sorriso me bastaria. Um meneio com a cabeça, para mostrar que ela ao menos me ouvira. Um “rá!” que fosse. Ou então a pior reação que uma piada pode provocar, o terror de todo o piadista profissional ou instantâneo. A pessoa que ouve a piada perguntar:
– Como assim?
“Como assim?” é mortal. “Como assim?” é o túmulo da piada. Não há vida inteligente depois de “Como assim?”. Ter que explicar a piada é uma humilhação da qual ninguém se recupera. Como responder a um “como assim?”?
“É uma piada, minha filha. Autodepreciativa, pois me compara a uma seringa de vida efêmera, que teve sua breve utilidade neste mundo e agora vai para o cemitério das gazes e das luvas sujas junto com o resto do lixo infectado pelo contato humano. Como eu, que não sirvo mais para nada e sou o lixo de mim mesmo.”
Mas fiquei quieto, como ela. Fizemos um pacto tácito de silêncio. Esqueceríamos o ocorrido, a piada e seu fracasso. Não tenho dúvida de que ela ouviu e entendeu a piada, mas a piada só a entristeceu.
Não quero pensar mal da moça, mas desconfio que na hora da estocada – olé! – ela errou a veia de propósito, pra eu aprender.
Luis Fernando Verissimo|Estadão