Se você olhar um mapa dos atentados do último fim de semana em Paris, verá que eles ocorreram ao longo do boulevard Voltaire.
Não sei isso foi intencional, mas a associação do iluminista Voltaire a desatinos do fanatismo religioso confere a esses ataques terroristas uma simbologia adicional.
Voltaire foi um dos principais defensores das liberdades individuais, e muito do que entendemos sobre a necessidade de independência do Estado em relação às religiões vem de suas ideias.
Em 1736, escreveu uma peça intitulada “O Fanatismo ou Maomé, o Profeta”, na qual criticava a manipulação e o fundamentalismo religiosos.
O texto se utilizava de episódios da biografia de Maomé para criticar o despotismo do clero e da Igreja Católica. Não sei se os terroristas de Paris sabiam disso.
Hoje, as democracias modernas estimulam a diversidade e o multiculturalismo. A Inglaterra, por exemplo, chega a abrigar líderes religiosos radicais que pregam guerra santa contra o Ocidente. A mesma coisa acontece em outros países europeus.
No entanto, é democrático permitir a existência de grupos cuja intenção declarada é impor a toda a sociedade sua visão dogmática de mundo? O fundamentalismo islâmico do EI, por exemplo, fala na eliminação de todos os não muçulmanos.
A ideia do fundamentalismo religioso é patológica: alguém acha que adquiriu o monopólio da verdade divina. Acaba conseguindo convencer outras pessoas de que fala em nome de Deus. A partir daí, quem não concorda com o emissário divino está ferrado. Não há mais argumento possível.
A intolerância religiosa é desonesta: o que ela quer é poder. A espiritualidade e a ignorância são exploradas para manipulação política e econômica.
Não é por nada que o EI quer controlar um território. Não é por acaso que líderes religiosos, em geral, vivem de forma mais opulenta que seus fieis.
Na democracia, dogmas religiosos não podem ser impostos. Todo mundo –padre, pastor, imã, rabino etc.– tem de concordar com isso. Se alguém quiser impor comportamento ou moral religiosa compulsórios, saímos do Estado democrático para a teocracia.
O fanatismo e o fundamentalismo religiosos são fenômenos globais. Sob outra forma e denominação, eles também avançam sobre o Brasil.
Um personagem de Voltaire, o Cândido, depois de ter passado por vicissitudes e intempéries em vários lugares do mundo, chega à conclusão de que o caminho para o otimismo e a paz entre os homens é “cultivar nosso próprio jardim”.
Os terroristas matam infiéis em Paris, e, no Brasil, uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprova uma Proposta de Emenda Constitucional (99/2011) que autoriza igrejas a questionarem regras e leis diretamente junto ao STF, como se as igrejas já não contassem com privilégios em excesso.
Só em benefícios fiscais, recebem cerca de R$ 4 bilhões anualmente.
O Senado já sinalizou que não vai aprovar a ensandecida proposta.
No entanto, é preocupante que tenhamos na Câmara essa espécie de “Mullahs brasiliensis”, que não fazem abluções nem gritam Allahu Akbar antes de desferir o golpe, mas que, como o EI, querem assumir o poder do Estado e excluir os que não rezam como eles.
Alexandre Vidal Porto
Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de “Sergio Y. vai à América” (Cia das Letras). Escreve às terças na Folha de São Paulo