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Segundo amigos e familiares, ídolo da bossa nova está com boa saúde e tem contas bloqueadas
Fazia um mês que João Gilberto, 86, não encomendava um filé do restaurante Degrau — ou mesmo a sopa dos dias de indisposição, conta um garçom do estabelecimento no Leblon.
“Trabalho aqui há 43 anos, e sempre atendi o João. Agora parou”, completa o gerente da casa, Sebastião Alves . No último dia 19, a reportagem confirmou, na portaria de um prédio da rua Carlos Góis, no mesmo bairro, a razão do afastamento do cantor e violonista, cliente mais famoso do restaurante e um dos criadores da bossa nova.
Por causa de uma ação de despejo, João Gilberto foi obrigado a sair de casa e carregou consigo dívidas, processos na Justiça por uma turnê cancelada, uma ação por direitos autorais e desavenças familiares, entre os filhos e entre eles e a ex-mulher, Cláudia Faissol. Funcionários do condomínio e moradores disseram que o músico não habitava mais o apartamento de cerca de 140 m², com sala de janelas amplas, alugado no oitavo andar.
Naquela quinta, seus móveis ainda estavam lá. Quando a reportagem entregou um envelope na portaria solicitando uma entrevista, um funcionário avisou que a deixaria na caixa de correspondência. Também disse não ter notícias de quando João voltaria. O cantor deixou sua residência após interdição temporária concedida na Justiça à filha, a também cantora Bebel Gilberto, em novembro.
Estava relutante com a mudança, mas Bebel, uma amiga e Maria do Céu Harris —que namorou o músico antes de Faissol e vive com ele hoje— conseguiram convencê-lo.
Bebel tinha autorização judicial para arrombar o apartamento no Leblon, mas não foi necessário. Segundo pessoas próximas, João aceitou mudar-se para um apartamento emprestado na Gávea. A Folha localizou aquela que seria a nova residência do cantor, mas não conseguiu confirmar sua presença ali. Moradores e funcionários dizem que não sabem dele. A reclusão é característica notória sua.
Bebel não respondeu a um pedido de entrevista. O processo de interdição corre em segredo de Justiça, o que explica seu silêncio. Um velho amigo do músico, Otávio Terceiro, diz que ele está bem de saúde e que há inclusive a intenção de voltar a gravar canções.
Jorge Jamil, médico de João Gilberto, diz que conversou com ele há seis meses pela última vez e que ele apresentava boa forma para a idade que tem, 86 anos. “Também me pareceu lúcido”, atesta. A interdição vem em momento crítico, com acúmulo de dívidas e a resistência em permitir que a filha tomasse conta de sua vida financeira.
O autor do disco “Chega de Saudade”, dono de voz serena e de pouco volume, prezava tanto pelo isolamento que muitas vezes deixava Bebel trancada para fora. Um ex-vizinho conta que mesmo amigos com visita marcada tomavam chá de cadeira na portaria à espera de ele deixar subir.
A desorganização e os imbróglios financeiros (após o cancelamento de uma turnê em 2011 e com um empréstimo no banco Opportunity) resultaram em uma situação extrema. Amigos dizem que as contas bancárias de João estão bloqueadas na Justiça.
Estima-se que as dívidas tenham atingido R$ 9 milhões.
Ele teria parado de pagar aluguel e condomínio do imóvel no Leblon e enfrenta ação de despejo. Não é a primeira. Em 2011, veio a público outra, por não pagamento do aluguel de um imóvel na rua General Urquiza, no mesmo bairro.
Um ponto crítico do imbróglio foi a turnê de seus 80 anos, programada para o segundo semestre de 2011, projeto firmado entre João, com intermediação de sua então empresária e mãe de sua filha mais nova, Cláudia Faissol, e o produtor Maurício Pessoa.
O Theatro Municipal do Rio chegou a vender ingressos que iam de R$ 600 a R$ 1.400.
João cancelou a turnê alegando gripe. O Municipal foi a juízo para reaver os cerca de R$ 200 mil adiantados ao projeto —não se sabe como os valores foram distribuídos entre o artista e os agentes culturais. João acabou processado pelo produtor.
Documentos referidos no processo, que corre em segunda instância no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) mostram que o cachê de João era de R$2,5 milhões; 50% desse valor seria adiantado e outras parcelas seriam pagas após a realização dos shows.
O processo diz que foram comprovados “o pagamento a título de cachê ao artista no valor de R$ 1 milhão”, e “despesas com a locação de espaços no valor de R$144.460,00”.
A multa prevista no caso de quebra contratual era de R$1,125 milhões. Pessoa pede também indenização por danos morais. João perdeu em primeira instância e recorreu.
Procurado pela Folha, Pessoa disse que foi “prejudicado, financeira e profissionalmente” pelo cancelamento e que não falaria mais, “em respeito às dificuldades de João”.
A dívida com o Opportunity tem outra natureza. Faissol mediou o empréstimo de R$ 10 milhões feito pelo banco. Uma primeira parcela de R$ 5 milhões foi depositada.
Como garantia, em 2013, foram oferecidos ao banco 60% dos direitos autorais sobre discos de João, incluindo fatia da indenização milionária que ele pede, em juízo, à gravadora EMI, por supostos danos morais e uso indevido de direitos autorais. Advogados do banco hoje o representam no caso.
Uma perícia no TJ-RJ calculou a indenização em R$ 170 milhões. João ganhou em primeira instância, mas a decisão foi cancelada após recurso da EMI. Ele, então, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, que negou o recurso. O processo permanece no Rio.
Segundo Faissol, o músico recebeu do Opportunity R$ 4,75 milhões, em sua conta. O restante, diz, foi usado para pagar advogados que haviam trabalhado no caso da EMI.
“A importância correspondente ao adiantamento do banco foi depositada em conta individual de João Gilberto e foi por ele diretamente gerida”, defende-se ela, que, em entrevistas, foi tratada por João Marcelo Gilberto, filho do cantor, como “criminosa”.
“Sempre houve advogados em quaisquer negociações ou contratos. Nunca tive conta conjunta com ele. Sempre o auxiliei no que ele me solicitava. Como posso ter empobrecido João, se nunca recebi um real em nome dele?”
Somou-se aos processos uma ação em que João Marcelo pede ao pai pensão para sua filha caçula. “Entramos com ação para descobrir dados financeiro [do músico].”
“Estava sem acesso aos números, como ainda estou, e meu pai também tinha dúvidas sobre para onde estava sendo direcionado o dinheiro dele. Fomos aconselhados por advogados a entrar com ação visando obter a estimativa do valor, já que pessoas próximas escondiam as informações e as que estão hoje com ele continuam escondendo”, diz o filho.
“Quando conseguir a transparência almejada”, ele pretende retirar a ação. “Não tenho interesse em mantê-la depois.”
Para o filho, a reclusão de João pode ser explicada por uma dedicação ao trabalho.
“Meu pai tem um foco muito grande em sua arte, isso lhe traz satisfação, que acho que substitui para ele outros tipos de interações sociais. Ele é uma pessoa espiritualizada, que gosta de filosofias e de se sentir integrado com as energias do Universo. Para ele, estar só é uma forma de estabelecer melhor esses vínculos”, diz.
A excentricidade não é desconhecida para quem conviveu com ele. O baiano de Juazeiro foi retratado no livro “Ho-ba-la-lá” (2011), do alemão Marc Fischer, como um sujeito que desde jovem tinha dificuldades em cumprir acordos financeiros, vivia com dores de dente e perdia empregos por não respeitar horários. Folha de São Paulo