Atoms at work — aparentemente — não tem nada a ver com Cafarnaum. Foi (ou é em algum canto) uma exposicão ambulante que os nutridos irmãos do norte ergueram no atêrro da Glória, usando de um monstro plástico, disforme e repugnante, inflado de ar, como um elefante sem pernas e sem cabeça, surgido inesperadamente no solo estanque.
Tanto Cafarnaum quanto os átomos para o trabalho estão unidos na fatura episódica do novo romance de Campos de Carvalho, A chuva imóvel. A presenca do romancista em nossa literatura já é um atestado de que temos literatura. Pois não é qualquer literatura, não é qualquer povo que pode produzir uma obra como a de Campos de Carvalho. Não vem ao caso discutir decadência e ascensção de classes ou regimes sociais, de estratificação ou de fermentacão de culturas. Vem ao caso o caso Campos de Carvalho em nossas letras.
Não me compete apresentar o autor: seus livros anteriores já o marcaram. Há quem goste, hd quem deteste, mas não há indiferentes. Em recente declaração, o autor assim definiu sua obra definindo-se tambem: “A mim não me interessa distrair o leitor e sim atingí-lo na sua came, no seu cerne — como comecei por atingir a mim mesmo sem nenhuma contemplação”. Campos de Carvalho ataca, escorado em sua posição fundamental de homem humano. “Meu raciocínio lhes pertence mas não a minha consciência, podem me fazer girar como um pião mas é em tôrno de mim que eu giro, não em tôrno deles, êste o meu sistema solar e desafio-os a arrancar-me o sol como podem fazer com o seu, eles que te julgam os donos de tudo e são os donos de nada, e se apavoram com o Nada de que vieram e a que estão sempre voltando.”
Muitos críticos citam, a propósito de Campos de Carvalho, o exemplo de Henry Miller. É uma aproximação bastante pertinente, embora lateral. Em Campos de Carvalho há veios subterrâneos que escapam às influências de um romancista. Pessoalmente, gostaria de aproximá-lo a Swift. Mas êste é um assunto crítico. Swift ou Miller, ou Swift e Miller, Campos de Carvalho adquiriu autonomia e substância para ser êle mesmo, com o seu inclemente testemunho.
As aproximações podiam ser estendidas aos profetas bíblicos. Deixo aos leitores algumas indicações, das muitas que poderia fazer: Isaías, 22-7; Ezequiel, 1-7; Ezequiel, 11, 16, todo o capítulo 23. Aqueles que se espantarem com a crueza de suas imagens ou palavras, podem dividir a vergonha entre a Bíblia e o próprio Campos de Carvalho. A beleza às vezes é vergonha também.
A chuva imóvel marca o melhor momento da obra de seu autor. E mais: é um livro que honra toda a literatura brasileira. O protesto de Campos de Carvalho contra as bombas nucleares, as partículas de estrondo, o esfacelamento de placentas gêmeas, a morte, os cheiros, os miasmas — tudo a compor, pesada sobre cabeças ôcas, a chuva imóvel do nosso tempo — é muito mais que um simples testemunho: é uma confissão. “Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo.” Essa não é apenas a última frase de seu romance. É o primeiro grito de revolta de todo um tempo, de todo um homem. E esse homem não é apenas Campos de Carvalho. Somos todos nós.
Carlos Heitor Cony
Conheci Campos de Carvalho via O Pasquim, o romancista de vanguarda que nunca perdeu a dimensão do humano. A Chuva Imóvel, A Lua Vem da Ásia, O Púcaro Búlgaro e A Vaca de Nariz Sutil são livros que não podem faltar na estante de nenhum de nós. Tudo isso está junto em Campos de Carvalho, Obra Reunida (1ª edição, 1997, José Olympio Editora). O nome do livro é também o título de uma das histórias incluídas na coletânea. Todas seguem a linha satírica do autor, com nomes engraçados como A Lua vem da Ásia; Púcaro Búlgaro; Chuva Imóvel entre outras. Em cada uma delas ele procura atingir o leitor na sua carne, em sua cerne, através do ridículo e com uma ironia refinada. Campos de Carvalho questiona com muito humor os comportamentos dos homens em seu dia-a-dia. Reunindo várias de suas histórias, a leitura deste livro é um passeio pelo imaginário de um homem que não se conforma com a passividade diante das regras preestabelecidas da sociedade.