Sabe o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde? Não foi tão radical assim, mas algo houve com o Marcio Renato dos Santos, ou pelo menos com o autor de Golegolegolegolegah!, de 2013. Sabe-se, nem sempre a pessoa e o escritor são a mesma criatura. Às vezes um é apenas a sombra do outro — e rosnando no meio da noite. Quero dizer que o autor de Golegolegolegolegah! não é o mesmo de 2, 99, de 2014, nem o de Mais laiquis, de 2015. Nem, é claro, o de Finalmente hoje. Deixo o mistério da mudança — uma poção, um transplante de célula tronco, uma pancada na cabeça? — para a pesquisa científica. O mais misterioso nisso é que talvez nenhum dos dois autores se pareça com Marcio Renato dos Santos. Marcio Renato dos Santos pode ser um terceiro apreciando a movimentação.
Em Golegolegolegolegah!, nos deparamos com um mundo cinzento, angustiante, vago — quero ver você localizá-lo em algum mapa. Ao leitor sobra apenas um apoio: o drama dos personagens. Como esse drama é quase sempre meio fora do esquadro, ao fim fica uma sensação de estranhamento. Dr. Jekyll, digamos, esteve muito preocupado com as tristezas de seu coração.
Nos próximos volumes, Mr. Hyde toma as rédeas da carruagem e chicoteia sem dó nem piedade os cavalos. Agora o mundo é o mesmo que vemos de nossa janela, mas colorido pelo olhar de uma caricatura feroz. Mas, em seus melhores momentos, Marcio Renato deixa a sátira em segundo plano e podemos entrever os indivíduos.
Em Finalmente hoje, temos de novo o satirista implacável, mas ao dissimular mais o seu riso, ele se torna mais eficaz. Talvez seja duro engolir a burrice e o ridículo de certos personagens, em alguns contos, só que eles são tão humanos, tão nós mesmos, que são melancólicos. Em contos como “Pimenteira” ou “Finalmente hoje”, por exemplo, Marcio Renato dos Santos consegue um feito raro em termos de humor: ele deixa o leitor no meio do proverbial silêncio ensurdecedor.
Dr. Jekyll e Mr. Hyde se encaminham para um acordo. Cuidado, isso é muito perigoso.
Ernani Ssó