O título acima é verso da canção “Ele me deu um beijo na boca”, de Caetano Veloso e foi gravada nos anos 80, época em que o baiano gravou a obra-prima “Verdura”, em letra e música de Paulo Leminski. Estou mencionando-a porque poesia e poeta são capitais simbólicos cuja estima merece atenção e cuidado. Por isso, não dá para assimilar certas manifestações de inveja travestidas de crítica literária, especialmente quando a prática é recorrente e, sobretudo, quando é regra atacar gratuitamente uma obra em festa. Sim, a antologia Toda poesia, de Paulo Leminski é motivo para festa. E está sendo festejada. Apesar da tremenda esquisitice de se tentar exigir que um jogador de futebol marque gols em todos os jogos. Pois é esse o cerne do artigo de Marcos Pasche que o jornal Rascunho fez circular recentemente. É mais um exemplar de uma linha ultraconservadora que tem dado o tom na trajetória desta publicação. O escriba da vez se perde em mazelas críticas defendendo aquela Literatura com L maiúsculo que ainda não digeriu sequer as clássicas vanguardas. Ou, o que é pior, o escriba crê no que pensa a respeito de poesia, que seus juízos de valor, valores estes que vêm de um sentido de alta cultura, do beletrismo do pior pré-modernismo, esquecido até pelo pensamento mais casposo das universidades, é a saída para um tempo e uma literatura que, em sua visão, está em “crise”. Pode até estar, como tudo em nossa volta, mas nem por isso deve-se apostar em saltos duplos para trás: “tais intervenções atestam a necessidade de uma atenta revisão da poesia brasileira do século 20 e do que dela permanece ainda hoje. Isso se confunde com a própria revisão de valores de que necessita o país”, conforme as palavras do escriba.
Eu simplesmente não consigo admitir a existência de jornal tão conservador no mesmo lugar em que se consagrou uma das literaturas mais criativas do país. Exagero? Que o digam sobre os livros excepcionais O Vampiro de Curitiba (1965), de Dalton Trevisan, Catatau (1975), de Paulo Leminski, O Mez da Grippe (1981), de Valêncio Xavier e Mar Paraguayo (1992), de Wilson Bueno. Melhor dizendo: por aqui se acumulou obras fundamentais em um período extremamente concentrado. Por isso deixam, simbolicamente, um altiplano para a literatura brasileira recente. Veja: altiplano não é alta cultura. Ou será mesmo que o escriba da vez acredita que a alternativa é voltarmos à prática dos sonetos? É desta profundidade poética, forma pura, exercício técnico-poético, que a poesia do escriba se compraz e se faz em “alta” cultura. Ora, deixe-se tocar pela profundidade da pele.
Por isso, não toque na poesia. Não menospreze o leitor de Leminski, que possui senso crítico e sensibilidade voltados para outras referências. Querem pensar e usufruir essa poesia sem aprisioná-lo em paralelos contextuais ou em linhas evolutivas da literatura brasileira. Neste artigo não há linha que queira entender essa poesia pelo que ela é. Ao contrário do que se faz parecer, não há distanciamento crítico e o texto é marcado pela frieza do desejo sério de não aceitá-la. Basta dizer que a evidente expansão múltipla e multiplicadora da poesia de Leminski, em gestos corporais (Kamiquase, por exemplo, citado pelo escriba), nos quais se propõe uma leitura mais aberta do que seja a escrita, antes de ser uma facilitação, pode ser apoiada em leituras de recepção oral e performativa de um Paul Zumthor ou Reinaldo Laddaga, por exemplo. Dois craques da reflexão crítica que mereceriam leitura atenta do escriba no que são pertinentes a esse recorte cuja especificidade está na relação poesia e corpo. Sim, também estou falando dos bigodes, da roupa oriental, da assinatura à la Lech Walesa… Vai atrás, meu. Pois não dá pra engolir essa ladainha que se arrasta desde muito de resumir esses gestos em “poeta pop”, com o pretenso raciocínio crítico de que isto seria um afastamento do que seja o espaço da literatura. Ora, leia um pouco da expectativa que Maurice Blanchot colocou como “espaço literário”, espaço que vacila entre a linguagem e o fora dela mesmo, um espaço que não se inicia e nem se encerra no livro ou no campo estrito senso da Literatura, esta com L maiúsculo. Isto permite detectar, em Leminski, suas marcas de expansão, cujos livros se abrem à relação com outras linguagens. As transversalidades entre poesia e letra, escrita e gesto, personalidade e humor, linguagem de massa e cartum. É… a poesia de Leminski não é um prato feito. É um prato cuja simplicidade é difícil de obter. Leminski propõe deslocamentos tais que incorpora rótulos de modo geral, mas isto, no entanto, antes de apresentar-se como dificuldade ou problema, coloca uma singularidade poética capaz de atravessar épocas e fornecer associações com diversas outras linguagens. Isto também não é nada fácil. Leminski pertencia ao tempo em que o sentido de pertencer, verbo transitivo, de transição, dizia menos de uma noção contextual e afinava mais com o sentido que o filósofo italiano Giorgio Agamben deu para o “contemporâneo”: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Paulo Leminski sempre manteve sua exigência pela atualidade, exigência intempestivamente nietzschiana. Não é fácil ser muitos. Por isso, como admitir a facilidade de um artigo que não entende o quão difícil é ser fácil?
Ricardo Corona é escritor, editor e performer. É Mestre em Estudos Literários (UFPR), atuando nos seguintes campos: poesia contemporânea brasileira e hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas (performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, linguagem e cultura. É autor, entre outros, dos livros ¿Ahn? (Madri, Poetas de Cabra, 2012), Curare (SP, Iluminuras, 2011 – Prêmio Petrobras e finalista do Jabuti/2012), Amphibia (Portugal, Cosmorama, 2009). Na área de poesia sonora, gravou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007).