Eu simplesmente não consigo admitir a existência de jornal tão conservador no mesmo lugar em que se consagrou uma das literaturas mais criativas do país. Exagero? Que o digam sobre os livros excepcionais O Vampiro de Curitiba (1965), de Dalton Trevisan, Catatau (1975), de Paulo Leminski, O Mez da Grippe (1981), de Valêncio Xavier e Mar Paraguayo (1992), de Wilson Bueno. Melhor dizendo: por aqui se acumulou obras fundamentais em um período extremamente concentrado. Por isso deixam, simbolicamente, um altiplano para a literatura brasileira recente. Veja: altiplano não é alta cultura. Ou será mesmo que o escriba da vez acredita que a alternativa é voltarmos à prática dos sonetos? É desta profundidade poética, forma pura, exercício técnico-poético, que a poesia do escriba se compraz e se faz em “alta” cultura. Ora, deixe-se tocar pela profundidade da pele.
Por isso, não toque na poesia. Não menospreze o leitor de Leminski, que possui senso crítico e sensibilidade voltados para outras referências. Querem pensar e usufruir essa poesia sem aprisioná-lo em paralelos contextuais ou em linhas evolutivas da literatura brasileira. Neste artigo não há linha que queira entender essa poesia pelo que ela é. Ao contrário do que se faz parecer, não há distanciamento crítico e o texto é marcado pela frieza do desejo sério de não aceitá-la. Basta dizer que a evidente expansão múltipla e multiplicadora da poesia de Leminski, em gestos corporais (Kamiquase, por exemplo, citado pelo escriba), nos quais se propõe uma leitura mais aberta do que seja a escrita, antes de ser uma facilitação, pode ser apoiada em leituras de recepção oral e performativa de um Paul Zumthor ou Reinaldo Laddaga, por exemplo. Dois craques da reflexão crítica que mereceriam leitura atenta do escriba no que são pertinentes a esse recorte cuja especificidade está na relação poesia e corpo. Sim, também estou falando dos bigodes, da roupa oriental, da assinatura à la Lech Walesa… Vai atrás, meu. Pois não dá pra engolir essa ladainha que se arrasta desde muito de resumir esses gestos em “poeta pop”, com o pretenso raciocínio crítico de que isto seria um afastamento do que seja o espaço da literatura. Ora, leia um pouco da expectativa que Maurice Blanchot colocou como “espaço literário”, espaço que vacila entre a linguagem e o fora dela mesmo, um espaço que não se inicia e nem se encerra no livro ou no campo estrito senso da Literatura, esta com L maiúsculo. Isto permite detectar, em Leminski, suas marcas de expansão, cujos livros se abrem à relação com outras linguagens. As transversalidades entre poesia e letra, escrita e gesto, personalidade e humor, linguagem de massa e cartum. É… a poesia de Leminski não é um prato feito. É um prato cuja simplicidade é difícil de obter. Leminski propõe deslocamentos tais que incorpora rótulos de modo geral, mas isto, no entanto, antes de apresentar-se como dificuldade ou problema, coloca uma singularidade poética capaz de atravessar épocas e fornecer associações com diversas outras linguagens. Isto também não é nada fácil. Leminski pertencia ao tempo em que o sentido de pertencer, verbo transitivo, de transição, dizia menos de uma noção contextual e afinava mais com o sentido que o filósofo italiano Giorgio Agamben deu para o “contemporâneo”: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Paulo Leminski sempre manteve sua exigência pela atualidade, exigência intempestivamente nietzschiana. Não é fácil ser muitos. Por isso, como admitir a facilidade de um artigo que não entende o quão difícil é ser fácil?
Ricardo Corona é escritor, editor e performer. É Mestre em Estudos Literários (UFPR), atuando nos seguintes campos: poesia contemporânea brasileira e hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas (performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, linguagem e cultura. É autor, entre outros, dos livros ¿Ahn? (Madri, Poetas de Cabra, 2012), Curare (SP, Iluminuras, 2011 – Prêmio Petrobras e finalista do Jabuti/2012), Amphibia (Portugal, Cosmorama, 2009). Na área de poesia sonora, gravou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007).