Falemos de futuro em vez de alimentar as ideias mortas que ainda matam. É preciso cultivar nosso jardim. Sempre me incomoda quando os tais “mercados” —às vezes, com cara; com frequência, sem ela — resolvem comparecer ao debate público para demonizar a política, como se a empresa de expectativas chamada “Brasil” fosse uma potência massacrada por interesses mesquinhos, que têm de ser exorcizados.
No que há de sincero nessa conversa, trata-se de uma ilusão entre tecnocrática e autoritária. No que há de insincero, é só o vício de sempre se vendendo como virtude, muitas vezes na pena de rufiões da opinião. Isso tem custo. Observo, à partida, que nem sei direito quem é esse “ente” que fala.
As vozes parecem vir de alguma racionalidade empírea, que nos faz o favor de baixar lá do mundo das ideias para nos libertar das correntes da escuridão. Na última vez em que esses arautos julgaram ter visto a luz para nos relatar a verdade do mundo, escolheram Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para nos tirar da caverna. Deu no que deu.
Ah, obviamente eu não quero esculhambar as contas públicas; mandar o teto de gastos às favas —até porque a dupla milagrosa já fez isso—; defender que se gaste à vontade; que se aposte em um pouco mais de crescimento ainda que isso custe um tanto extra de inflação.
Noto à margem que temos produzido inflação alta, com baixo crescimento e juros na estratosfera. Se indagarmos ao “ente” o que há de errado na equação, a resposta vem de pronto: é a questão fiscal.
Eu gostaria sinceramente que os nossos pensadores, que tiveram acesso às luzes, oferecessem, então, o seu padrão de resposta fiscal, mas sem provocar uma convulsão social —afinal, suponho que o plano não contemple tropas nas ruas. Em outubro de 2020, por exemplo, Guedes especulou sobre a privatização das UBSs. A Covid-19 já matava a rodo.
Em abril de 2021, com o gráfico de mortos em escalada vertiginosa, resolveu refletir sobre a Saúde nos seguintes termos, com a habilidade de sempre quando trata da questão social: “Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”. Já havia proposto, àquela altura, a “vaucherização” da Educação.
Eis aí. Então vamos cortar radicalmente as despesas, acabando com as vinculações orçamentárias. Ao mesmo tempo, é preciso tocar as reformas administrativa e tributária e levar adiante as privatizações. E por que não se fez? “Ah, é que a política e os políticos impediram o governo de levar adiante o seu projeto”.
É? O atual comando da Câmara decorreu de uma escolha feita por Bolsonaro, com o aplauso de seu ministro da Economia.
Ocorre que a política existe. E não é só aqui. Um governo que quer formar consensos, ou quase isso, em defesa de algumas ideias que, em princípio, podem até ser recusadas pela maioria tem de mobilizar seus apoiadores e articuladores para, então, fazer o trabalho de convencimento, que pode ou não ser bem-sucedido.
Bolsonaro ocupou seus dois primeiros anos tentando articular um golpe. Nos dois finais, atuou como refém daqueles a quem teve de comprar para não cair. E estes, reconheça-se, por contraste, desmobilizaram o seu golpismo.
Guedes está por aí a pedir uma segunda chance para o que chama de união bem-sucedida entre “liberais e conservadores”. Santo Deus!
“Não entendi aonde você quer chegar, colunista!” Eu explico. “É a política, estúpido!” Se o próximo presidente não tiver a habilidade de sentar para conversar, de buscar o ponto de equilíbrio entre forças aparentemente inconciliáveis, de inserir na equação —e já— os milhões desassistidos pela crise, não há ponto de chegada virtuoso.
A cada vez que leio raciocínios tortos, segundo os quais o Brasil precisa se livrar, a um só tempo, de Lula e Bolsonaro porque supostas faces do mesmo mal, cercados por políticos interesseiros, constato, com estupefação, mas não com surpresa: querem mesmo é exorcizar a vontade expressa de pelo menos 70% do eleitorado. Mais um pouco, e alguém sugere que o Brasil tem cura, mas só com outro povo. São os iluminados das cavernas.