Cinco dias de ventania

Minha cidade é tão longe da fronteira, mas tão longe, que acaba ficando bem perto de outra. Ela não é tão densamente povoada como é muito habitada. São dez mil braços e pernas e outros tantos que insistem em ficar no anonimato. Eles moram em casas e alguns edifícios para onde vão depois do trabalho, das compras ou dos passeios. E saem deles para fazer o roteiro inverso. As ruas, em geral, são mais largas que as ruelas e becos. Exceção seria a avenida principal, mais larga que todas, mas ela não existe. O grande comércio da minha cidade é feito inteiramente de produtos vendidos na Capital a 300 km de distância. Os moradores para lá se deslocam com grande alvoroço a fim de não perder as liquidações. Apenas duas lojas enfeitam minha cidade. A melhor fica de frente para o mar, ao lado do vulcão ativo e tem precipício imenso nos fundos.

A outra foi transformada em museu. A biblioteca pública foi fechada por falta de traças e fungos. Os cupins foram punidos porque comeram a perna de pau do adjunto facultativo da farmácia. A cidade completou 60 anos de existência, sendo que seu filho mais velho ainda vive muito bem aos 85. As notícias chegam de todos os lados para seus habitantes. A última veio do Norte e dava conta de que estávamos sendo invadidos pelo Sul. O lapso foi corrigido a tempo e invadimos a ilha que fica colada na região Oeste. Estava deserta. Os funcionários do governo trabalham todos para o governo. O que toma conta dos arquivos públicos está nesse posto desde que entrou. O que toma conta do funcionário que toma conta dos arquivos públicos está de licença maternidade. Nossa bandeira, nosso orgulho, foi desenhada por um dos mais destacados artistas plásticos. Ela tem círculos concêntricos que simbolizam nossas matas e postes de iluminação pública.

O exército não existe mais. Foi atropelado por uma bicicleta no dia da parada cívica mais importante: Dia da Galinha. Hoje a cidade prepara-se para receber a visita do ilustre senhor governador do Estado. Ele deve chegar a qualquer momento se o vento não vier antes. Hastearam a bandeira no topo da igreja, os sinos dobram no alto do pinheiro e foram distribuídas bandeiras de mão a todos os bois e vacas. Na varanda da cidade, a rede de balanço espera turistas, crianças perdidas e moscas.

*É encarregado do Departamento de RH – Restos Humanos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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