E lá se foram 75 anos…

Esta semana, para surpresa geral, sobretudo minha, completei 75 anos. Quer dizer, como aprendi com o saudoso Rubem Alves, “desfiz” 75 anos. Por isso, não me perguntem quantos anos tenho, porque não sei. Sei quantos já não tenho – conforme ensinamento de Rubem: exatamente os 75 já feitos.

Quando atingiu a mesma idade, o inesquecível Ruben escreveu: “Minha formação filosófica exige que eu use as palavras com precisão porque as palavras devem revelar o ser. E é assim, usando de forma precisa as palavras, que comunico aos meus leitores que desfiz 75 anos…”.

Para ser sincero, nunca pensei chegar até aqui. Viver tanto tempo. Não é coisa comum em minha família, especialmente em relação aos homens. Estou quebrando paradigmas.

Viver muito tem as suas vantagens: convive-se por mais tempo com quem se quer bem, aprende-se bastante, contempla-se muitos nasceres e pores do sol, vê-se os netos crescerem, ganha-se coragem para dizer o que precisa ser dito, sem medo de represálias… Mas tem as suas desvantagens: as ilusões se vão, os sonhos se perdem no horizonte; convive-se mais tempo com os patifes, safados e oportunistas, em especial os da vida pública; os ídolos desmoronam ou se mostram falsos; testemunha-se mais tempo as injustiças, o sofrimento alheio, a ausência de solidariedade; assiste-se à destruição de um mundo que tem tudo para dar certo; sofre-se a ausência de pessoas queridas; a solidão aumenta e, sente-se na carne a falta de força para reagir a isso tudo.

O pior é que não me sinto velho. Ou, por outra: velho sei que sou e aceito essa condição, mas não me sinto um inútil. Posso ter dificuldade de andar, passei a olhar onde piso, não devo tropeçar, dói-me as juntas, sou obrigado a medir o tamanho dos degraus antes de descer ou subir uma escada; a saúde não é mais a mesma, preciso tomar alguns remédios, e já não posso fazer muito do que tanto gostava, como levar os meus olhos para passear por este país de múltiplas belezas. Mas ainda sou capaz de pensar, raciocinar, tirar conclusões, reviver a vida vivida. Acho, até, que vejo as coisas com maior clareza, maior exatidão. Não com mais paciência, por certo. Pelo contrário, a indignação mantém-se intacta e é maior ainda, agora que tenho pouco tempo. Outra alegria é a descoberta dos amigos de verdade, aqueles que são poucos, mas verdadeiros. E ainda mantenho o amor pelas letrinhas, o gosto inenarrável de dispô-las uma atrás da outra, formando palavras, contando histórias, dando opiniões e fazendo minha catarse, aliviando tensões e dando pálida ajuda na busca por um mundo novo, mais justo e mais igual. E assim espero continuar fazendo enquanto houver quem se disponha a divulgar os meus escritos e quem faça a gentileza de lê-los.

Como todo mundo, lutei a vida inteira. Pela sobrevivência, pelos meus ideais, pela vontade incontida de mudar o mundo. Como a luta seguiu os ditames da Convenção de Genebra e os limites da decência, da sinceridade e da lisura, pouco consegui. Mas dei o melhor que pude. E, pessoalmente, não posso me queixar da vida. Não reuni fortuna nem patrimônio, mas recebi a honra divina de ter nascido na Lapa e ser lapeano, crescer em Araucária, quando o rio Iguaçu ainda era líquido; e me civilizar em Curitiba. Casei-me com a mulher que quis, que foi e será a única da minha vida, por toda a eternidade e ainda mais. Cleonice, que me suporta com amor, paciência e resignação há mais de 50 anos, tem lugar garantido no Céu. Tenho um filho muito querido, Carlos Eduardo, inteligente, digno e trabalhador (e, ainda por cima, jornalista), uma nora, Melissa, que é a filha que não tive, e dois netos extraordinários, Eduardo e Fernanda, e mais um sobrinho-neto de pouca convivência, mas com lugar cativo no meu coração, Pedro Henrique, filho de Heitor e Luciana e neto de meu irmão Édison, que já nos deixou.

Profissionalmente, só fiz o que gostava, um privilégio que poucos têm. Pintei cartazes de cinema, fui locutor de rádio e colunista de jornal, formei-me em Direito, ajudei a criar e a fazer revistas e jornais, participei da administração pública, dei a minha parcela na tarefa de dignificar com trabalho e correção o serviço público, fui advogado militante e acho que não deslustrei o escritório dos meus queridos Romeu Felipe Bacellar Fº e Renato Andrade; e hoje, no ocaso da vida, estou neste blog, exercitando uma vocação, por gentileza e benevolência do bravo Zé Beto, um valente cidadão que soube, como poucos, enfrentar as tragédias da vida e sair-se vitorioso.

Na terça-feira, reuni a família em torno de um tinto italiano de boa safra. Trocamos opiniões e abraços, reafirmamos estimas recíprocas e continuamos a vida. Dos amigos, recebi telefonemas carinhosos e manifestações por e-mails, igualmente afetuosas. São as melhores coisas que podem acontecer quando o crepúsculo e a noite se anunciam, como ensinava Rubem Alves.

Ele achava ainda que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas nem por ondas celebrais. “Somos humanos” – pontuava –, “e permaneceremos humanos enquanto estiver acesa em nós a chama da alegria”. Desfeita essa esperança, a vida perderá o sentido.

céliodois

Blog do Zé Beto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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