Editorial iguala Lula e Bolsonaro, como se o atual presidente estivesse dentro da régua da civilização
Na última semana, numa entrevista à GloboNews, o general Hamilton Mourão admitiu: a ideia é barbarizar de vez, caso Bolsonaro seja reeleito. Trocando em miúdos, o Congresso aprovaria uma PEC aumentando o número de ministros do STF e o presidente da República indicaria nomes terrivelmente fiéis, dispostos a por fim à separação de Poderes.
Curioso: o agora senador eleito, pelo Rio Grande do Sul, tem o mesmo sobrenome de outro general, Olímpio Mourão, a “vaca fardada”, comissão de frente do golpe de 1964. Com a geografia embaralhada, diga-se de passagem. Se um partiu de Minas Gerais contra a democracia, o outro dispara justamente da terra de Leonel Brizola e João Goulart.
Mas o problema “é a economia, Lula”, conforme o editorial desta Folha publicado na capa da edição do último domingo (9). Segundo o texto, estamos, nós, a sociedade brasileira, vivendo um momento de otimismo, com o Brasil indo de vento em poupa, portanto, seria mandatório que o candidato do PT diga logo como pretende nos manter neste rumo auspicioso.
“A pobreza mental e moral desse empresariado que age na política só por interesse direto, dominado por ganância e egoísmos patológicos, é responsável por grande parte das desgraças que assolam o país”, escreveu, coincidentemente, Jânio de Freitas, na mesma edição de domingo.
Perspectiva do tempo
Ele, o velho Jânio, já viu este filme: a democracia definhando, agonizando, enquanto se exige compromissos só da esquerda. Esquerda, aliás, é maneira de dizer, já que Lula vem se cercando de todos os credos, tendo amealhado a declaração de votos insuspeitos. Até dos papas: Pedro Malan, Armínio Fraga, Pérsio Arida, Edmar Bacha, André Lara Resende e Henrique Meirelles, além de Fernando Henrique Cardoso.
Lendo hoje os editoriais de 1964, a impressão que se tem é que foram escritos por terraplanistas. Quem iria garantir a democracia eram os quartéis, e João Goulart, um estancieiro de São Borja, estaria preparando a revolução russa. Como se sabe, o temido golpista nem sequer resistiu ao golpe. Fato: a perspectiva do tempo não perdoa.
Por dever do ofício de biógrafa, tive a oportunidade de ler todos os editoriais publicados nas semanas que antecederam o 1º de abril, um a um, em pelo menos quatro jornais: Correio da Manhã, O Globo, Jornal do Brasil e Última Hora. A propósito, honrosa exceção para a Ultima Hora, o jornal fundando por Samuel Wainer, o único a ficar do lado certo da história.
A coisa esquentou nas páginas dos matutinos e vespertinos após o famoso comício da Central, em 13 de março, quando João Goulart chamara o povo para a rua em defesa das reformas de base. Entre estas, a reforma agrária. Antes de seguir para o comício, ele assinara dois decretos, um desapropriando terras ociosas às margens das rodovias e outro encampando refinarias particulares de petróleo. Logo assinaria a lei limitando remessas de lucros para o exterior.
Segundo O Globo: “Ainda se poderá falar em legalidade neste país? É legal a situação em que se vê o chefe do executivo unir-se a pelegos e agitadores comunistas, para intranquilizar a nação com menções a eventuais violências, caso o Congresso não aceite seus pontos de vista?”.
O mais famoso dos editoriais, intitulado “Basta”, viria alguns dias depois, no dia 31 de março, véspera do golpe, publicado na capa do vetusto Correio da Manhã: “Basta de farsa. Basta de guerra psicológica que o próprio governo desencadeou com o objetivo de convulsionar o país e levar avante a sua política continuísta. Basta de demagogia”.
Na Ultima Hora, Paulo Francis revidou: “Vários editoriais de domingo não eram apenas insubordinados como os marinheiros, mas nitidamente subversivos, pois pediam a cabeça de Jango, incitavam os militares à rebeldia armada contra o governo”. Na sua opinião, “os ‘democratas’ abandonaram o travesti, desnudaram-se exibindo a epiderme dos gorilas que são e sempre foram”.
Neoliberalismo canibal
Passados 58 anos, cá estamos de novo, com a democracia por um fio. Desde 2018, assistimos a esta invasão dos bárbaros. Eles avançam, corroendo tudo. Em “Como as Democracias Morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chegaram a alguns quesitos para avaliar o risco dos candidatos de extrema direita. Bolsonaro se encaixa em todos.
Ao rejeitar as regras do jogo e contestar os resultados das urnas, batendo na tecla das “eleições limpas”. Ao propagar ameaças de golpe, recuando e progredindo. Ao atacar a imprensa. Ao incitar a intolerância e a violência.
Sobretudo, ao negar a legitimidade do oponente. No discurso bolsonarista, todo progressista é comunista e agente do globalismo, ameaça em potencial aos valores da pátria.
No editorial de domingo, a Folha igualou as campanhas de Lula e Bolsonaro, clamando por um “debate de ideias”, como se o atual presidente estivesse dentro da régua da civilização. Fico imaginando quais as “ideias” de Bolsonaro a serem discutidas: a tortura como política de Estado? Se a solução para o problema da segurança pública seria botar uma AK-47 na mão de cada cidadão? O combate à “ideologia de gênero” como prioridade do MEC? O fechamento do STF? Ou a transformação da Amazônia num grande garimpo?
É o fascismo, Folha. Não adentremos as minúcias da doutrina de Mussolini. Até porque Jair não é Benito, que tinha lá o seu arcabouço teórico e algum verniz. Suas raízes estão fincadas, todos sabemos, no fascismo rasteiro, aquele natural de Rio das Pedras. O neoliberalismo canibal não nos salvará da ruína moral, mesmo que nos tornemos uma grande Miami.
Editoriais são documentos históricos —e Bolsonaro não é um problema do Lula, mas um problema nosso.