Para o estudante de psicanálise, o capítulo sobre o narcisismo, um dos mais geniais, complexos e revolucionários escritos por Freud, rende pelo menos umas cinco aulas tão exaustivas quanto fascinantes. Depois de alguns meses ou anos, ao retornar ao texto, a sensação de que ainda falta extrair muito daquelas linhas continuará lá. Talvez você sinta que precisa recomeçar a formação (ou nascer de novo?), pois deixou escapar zilhões de caixinhas e gavetinhas que não foram abertas. E é por isso, por me causar tanto incômodo (e por me fazer voltar todos os dias para a sensação da primeira leitura), que Freud sempre será minha pessoa favorita no mundo.
Mas, com a febre dos testes rápidos de psicologia barata (travestidos de joguinhos de autoconhecimento) no TikTok e no Instagram, ignoram-se completamente estágios do desenvolvimento psicossexual, as fases autoerótica e fálica e os conceitos de ego, objetos de amor, alteridade e pulsão de autoconservação.
Também são escanteadas as teorias brilhantes e radicais de Melanie Klein (em contraposição ao narcisismo freudiano), como ego precoce, projeção e introjeção, investimento libidinal, instinto destrutivo e seio persecutório. O mesmo para Winnicott, que fala sobre o amálgama mãe-bebê (ou bebê-ambiente/cuidador).
Se você porventura um dia se atreveu a ler sobre o estádio do espelho, sabe que Lacan não só abriu todas as zilhões de caixinhas e gavetinhas do narcisismo de Freud como ainda achou buracos (que chamou elogiosamente de “texto aberto”), criando assim seus escritos sobre formação do Eu e constituição do sujeito humano. E se isto não é literatura finíssima, eu não sei o que é: “um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação”, ou então “a armadura enfim assumida de uma identidade alienante”.
Afinal, para que livros densos (desonram até a mitologia grega, os poetas, Ovídio, Tirésias, ninfas, Eco e rios com águas límpidas margeadas por flores) se podemos dar aquela zapeada maníaca e, bovinamente, nos entreter com um teste sobre narcisismo? São rapidinhos, dançantes e trazem quase sempre um idiota apontando para o ar, onde surgem perguntas digitalizadas: “Sua mãe faz chantagem emocional? Faz você sentir que é responsável pela felicidade dela?”.
Meus amigos, minha mãe é descendente de italianos. Chorou por 15 anos quando eu saí de casa “criança”, aos 26 anos. Ela diz que ali, naquele dia, começou a morrer e nunca mais parou. Mas esse personagem sensacional é dramático o suficiente para estar em todos os meus delírios de grandeza artística, em meus livros e crônicas e jamais caberá num teste de psicologia marqueteira.
Quem ainda aguenta estas chamadas? “Descubra se você é uma mãe narcisista, se a sua mãe é narcisista, se você é um filho de mãe narcisista, se a sua mãe é narcisista como a mãe de Larissa Manoela, se a mãe de Larissa Manoela é narcisista e se a sua mãe ou você enquanto mãe é tão ou mais narcisista que a mãe de Larissa Manoela.”
A febre desses questionários simplificados e criminosos é fácil de explicar: eu, minha família inteira, você e sua família temos, segundo eles, transtornos e síndromes. Quer ver outro jogo da modinha, bem gostosinho, para estragar sua vida? Não conheço uma amiga cujo filho não tenha pontuado pelo menos 80% na provinha do transtorno opositor desafiador. A analista da minha filha disse que “esse TOD” consegue fazer mais mal do que aquela bebida de nome parecido, cheia de açúcar, que um parente (não direi qual) insiste em dar para a pequena.
E pensar que um dia, fazendo coro com os Titãs, tivemos medo de que fosse a televisão a nos deixar burros demais.