Eu tenho um amigo palestino, o cineasta Hany Abu-Assad. Nós nos conhecemos no Festival de Toronto de 2005, ele lançando o seu segundo filme, “Omar”, depois do bem recebido “Paradise Now”, e eu e meu cônjuge, “Casa de Areia”. Residente às margens do mar da Galileia, sobre cujas águas caminhou Jesus, Hany se formou em engenharia aeronáutica na Holanda, mas trocou os cálculos pela sétima arte.
Hany tem uma visão irônica e fatalista do conflito entre o Ocidente e o Islã. “Querem nos enfiar a globalização e o consumo goela abaixo, mas o planeta não vai suportar o atual nível de exploração de recursos hídricos, minerais… Sou engenheiro, sei o que estou dizendo. E quando formos obrigados a voltar a viver da subsistência, nós, os atrasados, estaremos mais aptos a resistir.”
Filho de muçulmanos, Hany assinaria embaixo do “Laudato Si”, carta encíclica de 2015, publicada no terceiro ano de pontificado do papa Francisco. “Esta irmã (a Terra) clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la.” “Laudato Si” prega o “regresso à simplicidade”, em oposição ao “crescimento infinito ou ilimitado” da “mera acumulação de prazeres”.
E, antes mesmo de Alá e Cristo, a secular Academia já alertava para os perigos do progresso desenfreado. Em “Há um Mundo por Vir? –ensaio sobre os medos e os fins” (Editora Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental), a filósofa Débora Danowski e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro também enxergam, nas civilizações ameríndias tidas como primitivas, um exemplo de resistência às catástrofes que nos aguardam no Antropoceno.
“Os ameríndios nos ensinam como sobreviver num mundo devastado por uma civilização inimiga, que julgava ter direitos de soberania sobre tudo o que existe e, hoje, se encontra na posição de inimiga de si mesma.”
Se alguém não apertar o freio, os pastores do crescente fértil e os povos da floresta seremos nós amanhã.
Eu assisti às imagens do flagelo dos yanomamis e das crateras de lama tóxica na mata virgem de Roraima pela televisão, de uma Lisboa apartada da perturbadora ansiedade apocalíptica que assola o planeta. Com dez milhões de habitantes espalhados por um território pouco menor que o da reserva indígena invadida pelo garimpo ilegal, Portugal foi salvo pela estagnação.
O findo Império Marítimo floresceu nos Descobrimentos, mas foi incapaz de sustentar suas ambições expansionista através dos séculos. Tensões constantes com a vizinha Espanha; a Inquisição e a evasão de cérebros; a investida da Holanda mercantilista sobre portos estratégicos do Atlântico e das Índias; a custosa dependência da Inglaterra; a invasão napoleônica; o fim do tráfico negreiro e a independência das colônias, sem contar as décadas perdidas de salazarismo, chutaram Portugal para escanteio.
Pisei pela primeira vez em Lisboa ainda criança, em julho de 1974, três meses depois da Revolução dos Cravos. Sisuda, suja e deprimida, a cidade, como Inês, parecia morta. Nos menos dramáticos anos 1990, era comum ouvir nas ruas a expressão “quando eu for à Europa”, como se o país não fizesse parte do continente.
Com 20 anos de atraso, a mcdonização dos grandes centros aportou no Tejo, junto com o euro e a União Europeia. A onda dos arranha-céus de vidro espelhado, rodeados de vitrines de perfumaria e grifes, já estava ultrapassada, o que livrou Portugal do boom imobiliário Miami duty free shop.
A “capacidade de se alegrar com pouco”, louvada pelo Santo Padre, era traço de caráter da terrinha e a longa paralisia se transformou num ativo de mercado nos sites de decoração e turismo.
“Jardim à beira-mar plantado”, o país mais ocidental da Europa é, também, o mais distante da Guerra da Ucrânia. As sequelas sociais do regime escravocrata que fomentou ficaram de brinde para as ex-colônias e, se os turistas continuarem vindo e a Jihad não inventar de reconquistar a península Ibérica, grandes são as chances de Portugal preservar a aprazível modéstia.
Por trás da aparente estabilidade, no entanto, reside o desassossego. Os portugueses, como o resto dos europeus, desistiram de ter filhos e envelhecem num ritmo preocupante. Desacelerar é, também, perecer.
O Brasil adolescente, violento e irascível nada tem da senilidade melancólica da Europa. Nele, tudo é barulho e desespero, tudo é excesso, é muito e é demais. E “a mera acumulação de prazeres”, condenada pela encíclica, é fundamento de sua maior festa, o Carnaval.
Vai ser ruim de segurar.